domingo, 21 de novembro de 2010

Carta a um tal de cancro

Olá,



Não me tenhas por mal criada por não te tratar pelo primeiro nome mas é que ele é tão feio que nem sei como te deixaram nascer... De certeza que a tua mãe era uma louca e o teu pai parvo, mas deixemo-nos de falar de ti, não mereces. Quero que saibas que quando apareceste na minha vida comecei a dar valor a coisas simples: a um sorriso, a uma gargalhada, a uma boa conversa, a MIM. Acho que apareceste numa altura em que te deu jeito mas para mim foi um má altura, foste um estorvo. Por ti tive que ficar num hospital, passar por um bloco operatório e tirar um pedaço de mim mas fico contente porque foste agarradinho a ele para o LIXO.

Como vês não és assim tão invencível, eu tinhas as minhas armas da cura mas também não te soubeste comportar como doença. Apareceste para me chatear e para me destruir, apenas um pouco de mim, porque dir-te-ia que o essencial ficou intacto: a minha VIDA. Apareceste para me chatear e agora eu escrevo-te para te dizer que consegui GANHAR. Esta batalha foi dura para mim, tive momentos em que gritei, tive outros que o simples grito não era mais que o extravazar de um sentimento já não presente... Apenas o fazia porque ao espelho me via diferente. Mas quem és tu para aparecer sem data marcada nem aviso prévio? Destruis-te tantas vidas, achavas que eras suficientemente forte para destruir a minha? Logo eu, que tenho a melhor família, os melhores amigos, a melhor profissão e um grande coração. Se por breves minutos achei que era o meu fim fizeram-me ver que afinal não seria bem assim. Aprendi a lutar, a viver ao segundo, a esquecer o passado e pensar no futuro. Se algum dia andares pela rua e te cruzares comigo não te acanhes de me dizer olá até porque te direi o que mais gostei de te dizer.... quando acordei: ADEUS! Por breves instantes causaste pânico em mim e principalmente àqueles que amo, e isso, desculpa, mas não te posso perdoar. Espero que entendas a partir de hoje a raiva com que falei de ti, mas só o fiz para ganhar as forças necessárias para te levar de vencido.

A ti que tentaste fechar a cortina antes da peça terminar... Pensa bem porque se olhares de novo para trás sabes qual vai ser o teu lugar... A única coisa que vais conseguir é incomodar porque sabes que no fim de tudo eu acabo SEMPRE por ganhar...


Francisco Azevedo

20 de Novembro 2010

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

"Retrato frio" - parte 10 de... "Sonho real.... ou sonhado?"

Porto, 12 de Janeiro

Ainda me custa a acreditar na sorte que tive... há dias diambulava como em qualquer outro sítio da cidade, independentemente da chuva miudinha que teimava em querer fazer companhia... Caminhava pela minha cidade, pelo meu lugar que infelizmente era a minha casa (a rua) e encontrei o meu anjo na terra. A Marta caminhava pela artéria onde me encontrava e apesar do meu mísero aspecto reconheceu-me. Contei-lhe a minha história e ela ofereceu-me um tecto... Até quando? Apenas o tempo o poderia dizer, desde que eu não roubasse nada nem tocasse em nada que não fosse meu ela gostava de me ter por lá. Lembro-me quando ela falou comigo na noite em que eu fui jantar: a noite que mudou a minha vida...

- Se algum dia roubares... Parou de repente! Pediu-me desculpa, pelo que eu disse:

- Marta, eu não sou ladrão, sou infelizmente sem abrigo...

- Só de pensar que um dia partilhámos o palco do Coliseu custa-me a acreditar que és tu o sem abrigo que eu descobri por acaso hoje na rua. Ainda não consegui juntar as peças todas do puzzle mas acho tudo muito difícil de acontecer. Será que este mundo é um lugar bom para se viver? Não podemos apanhar um avião e ir para outro planeta onde as injustiças só acontecem às pessoas más?

- Pois... Se calhar eu fiz algo de mal na outra vida para agora estar a pagar por esses erros. Posso-te contar um segredo Marta?

- Claro! Que se passa?

- Lembras-te de te ter apresentado os meus pais num recital na Fundação Coopertino de Miranda?

- Sim, lembro-me perfeitamente!

- Pois é! Acontece que esses não são os meus verdadeiros pais... Fiz um silêncio arrebatador quando me interrompeste com um:

- Hã!? Conta-me lá isso como deve ser...

- Então é assim: quando eu nasci, a minha verdadeira mãe não tinha como tomar conta de mim, ela era mulher a dias na casa dos meus tios, o Justino e a Joana. Eles tinham muito dinheiro e conheciam casais que eram influentes importantes na cidade, muitas ligadas ao comércio do vinho do Porto e então os meus pais adoptivos ficaram comigo desde o primeiro mês... Sempre os vi como pais, aliás, não tinha porque não os ver... deram-me o mundo, o mundo que eu sempre gostei.

- E sabes agora onde anda a tua verdadeira mãe?
....
- Tenho medo de a ver! Não sei onde vive. Há tempos lembro-me de ter encontrado um senhor que conhecia a minha mãe, de seu nome António, não me perguntes como é que ele me reconheceu, nem eu sei como tu me reconheceste. Tinha-me dito que a minha mãe tinha saído da casa dos meus tios passado pouco tempo de me terem deixado ao cuidado dos meus pais adoptivos e foi viver / trabalhar para Espanha, mais concretamente em Barcelona. Começou por trabalhar como empregada de limpeza num restaurante no bairro gótico, depois passou por um hotel como empregada de andares e só saíu de lá quando tinha dinheiro suficiente para viver aqui em Portugal mas não sei exactamente o ano em que regressou. Ele disse-me que não sabia onde ela vivia mas que ainda era viva... Quando ele me disse que ela estava viva pensei em correr a cidade de fio a pavio mas também não tinha a certeza que ela morava no Porto, nem tão pouco como ela era agora. Diz-se que os pais reconhecem os filhos, mas o inverso.... ainda estão por confirmar.

- Não conheces ninguém que te possa ajudar? Tens o nome dela? Conheces mais alguém?

- Não! Só sei que durante anos fui feliz com pessoas que achava que eram meus pais. A minha mãe deve ter sofrido com a separação e agora deve sofrer se souber que vivo, ou melhor, vivia na rua. Mas sinceramente não sei o que nem como vou fazer.

- Vais procurá-la! Eu vou ajudar-te!

- O que virá por aí, Marta?

- Um futuro melhor...

Quando ela me disse estas palavras soltei uma lágrima, que desceu pelo meu rosto aos meus lábios. Nesse momento senti ao mesmo tempo forças para a procurar mas falta delas para continuar a lutar... Já passaram anos... A minha mãe não me vai reconhecer, nem eu a vou conhecer. Será que o destino não quer que eu seja feliz?


Porto, Rua da Torrinha nº 215

"Retrato frio" - parte 9 de... "Inesperado encontro"

Dei por mim a vaguear numa artéria que há muito não visitava mas não me lembrava sinceramente do nome, logo eu, que conhecia a minha cidade como a palma da minhã mão, como diria um amigo meu: eu era um gps em corpo de homem! Seria ela uma rua por mim inventada como se estivesse num filme ou uma personagem de um qualquer livro ou seria ela uma rua que um dia foi minha por empréstimo...

Divagava nos meus pensamentos quando ouvi alguém chamar por mim, uma voz doce, incrivelmente feminina mas não consegui saber de onde vinha. Estava já a perder a esperança quando uma menina, ou diria mulher, de olhos castanhos e cabelos compridos parou diante de mim:

- Mário Barreiros! És mesmo tu!? Não te lembras de mim?

Sou sincero que a voz não me era estranha mas a sua cara era um completo mistério...

- Desculpe, não estou a ver quem é.

- Marta! Do Coral de Letras, partilhámos o palco do Coliseu há dois anos.

- Ah...! Sim, desculpa não ter visto que eras tu mas como me reconheceste? Já viste como eu estou?

- Reconhecer-te-ia até no fim do mundo numa qualquer rua de Hong Kong ou Nova Iorque.... Mas o que se passou?

- Já percebeste que eu não sou..... quem fui!

Lembro-me que nesse momento baixei-me, fiquei bem perto do chão, sentei-me num degrau que dava acesso a uma joalharia e pus a cabeça nos joelhos, como se tivesse vergonha de lhe mostrar o meu verdadeiro eu...

- Mas, o que se passou?

- Bem, a história é muito comprida, não sei se vais gostar de ouvir nem sei se terás paciência para me aturar....

- Mário! Conta, eu quero-te poder ajudar! Sempre foste uma referência para mim, não vais deixar de o ser...

- Basicamente a história da minha vida resume-se a isto: há pouco tempo era feliz, de um dia para o outro perdi tudo... O dinheiro dos espectáculos não apareceram mas nem isso me levou a parar de fazer compras megalómanas e supérfulas. Comprei um piano de cauda para a minha casa em troca de um de meia, comprei um carro para a minha mulher e outro para mim e forrei o salão com colunas de alta potência e montei uma estúdio aqui bem perto do centro. As dívidas começaram a acumular, um dia quando estava a chegar a casa estavam lá dois agentes da PJ que tinham um mandado do tribunal para me penhorar tudo o que tinha para pagar o que devia... De um dia para o outro perdi a minha mulher, o meu filho, o meu cão, a minha casa.... Enfim, a minha vida! Desde o dia dois de Dezembro que vivo num chão frio ali perto do Rivoli nas arcadas do Banco. Nunca mais me ligaram para concertos apesar de ainda ter o mesmo telefone que vou carregando aqui e ali à sucapa, o meu agente desapareceu sem deixar rasto, abandonou-me com um dinheiro que tinha de parte e fugiu para parte incerta. Eu é que continuo sem destino, ou melhor, sei qual vai ser o desfecho: morrer aqui ou ali.... na rua!

- Não digas isso Mário! És um grande músico, encheste salas, tocaste com as melhores filarmónicas, viajaste pelo mundo porque te queriam ouvir. Vais ver que isto é só uma fase. Olha, porque não vens jantar lá em casa hoje? Há quanto tempo não tocas piano?

- Não, obrigado... Não quero nem posso incomodar, sou um sem abrigo, sou mais um no meio de tantos desta cidade. Já não sou o Mário Barreiros que enchia salas nem tão pouco o que ficava hospedado em hotéis de luxo...

- Vais sim senhora! Eu insisto, és meu convidado...

- Desculpa, mas não posso. Não posso voltar por momentos a sentir um conforto de lar e umas horas mais tarde estar a dormir.... ao relento, numa fria noite que nem o luar me aquece...

Marta olhou para mim com uma lágrima no canto do olho, parou durante alguns segundos para pensar no que me iria dizer depois de eu lhe ter dito isto....

- Ficas em minha casa estas noites, eu estou sozinha, aliás, vivo sozinha. Se nos dermos bem e se pagares a renda não tens porque te ir embora. Vem viver comigo durante uns tempos, vais ver que ainda vais encontrar de novo a felicidade e o caminho dos palcos...

Ao ouvir isto os meus olhos ergueram-se para ela, esperei tanto por um momento como este.... Casa, conforto, cama com colchão, cobertores.... Palavras pequenas mas que para mim tinham ganho um novo significado e importância. Acho que foi a primeira vez que chorei em frente a alguém... nem mesmo na morte do meu pai chorei, não estive presente, estava no estrangeiro para dar mais um recital.

- Mas eu não sei onde tu moras, não te quero incomodar...

- Rua da Torrinha nº 215! É fácil, vais de táxi, pega dinheiro...

- Não te preocupes! Eu vou lá ter, vou levar o que ainda me resta....

Faltavam poucos minutos para as oito e meia quando toquei no número 215 da rua da Torrinha, com uma mala quase vazia dos meus pertences e um chapéu meio desfeito na outra... Era o que eu usava para estender às pessoas por quem passava na esperança que alguém com um bom coração me desse uma moeda ou duas para uma sopa, porque tudo o que me davam era para me sustentar, não para me drogar como acontecia com outros sem abrigo.... neste Porto sem sentido!



Sem muito esforço.... enquanto a porta vermelho meio desbutado não se abria, pensei para mim mesmo:

- Não posso ter expectativas muito elevadas! Quero mudar a minha vida mas preciso que me ajudem... mas não posso pedir tamanha ajuda à Marta. Ela não merece que eu faça isso...

Enquanto a minha mente pensava em alguém que me ajudasse a escrever um novo capítulo da minha vida a porta abriu-se com um sonoro:

- Bem vindo a casa!

- Obrigado! És um anjo!

Jantámos pela cozinha, há muito que não tinha uma refeição completa, de comida caseira acabadinha de fazer. Arrumei tudo, aprendi os lugares das coisas.... sentei-me ao piano, toquei Chopin e a minha que me fez lembrar.... o momento em que eu era ALGUÉM. Hoje talvez seja o dia em que componha uma música que comece com a seguinte frase:

Há tempos descobri...
Que nada sabia...
Foi preciso viver fora do meu ninho...
Para saborear as coisas simples do dia-a-dia!


Fechei o tampo, pousei os cotovelos sobre o Samick que estava na sala e soltei uma furtiva lágrima. Lágrima causada pelo conforto e paz que há muito não sentia... Um conforto na alma e coração numa noite fria...


Porto, 12 de Janeiro

sábado, 13 de novembro de 2010

"Retrato frio" - parte 8 de... "Mais uma noite"

Porto, 6 de Dezembro

Foi a segunda vez na minha vida, a segunda como sem abrigo neste Porto sem sentido que fui para a esquadra da Polícia, no caso, a décima sétima esquadra, ali bem perto da Avenida da Boavista... Estava com o António na rua do costume (parece mal dizer isto) e chegou a polícia em duas carrinhas e puseram-nos numa espécie de uma "jaula", fui mais uma vez identificado e voltaram a não acreditar quem eu era, já não tenho bilhete de identidade. Esse perdi-o, deixei-o em qualquer lado, até porque infelizmente já não sou ninguém... Já fui!

Senti-me tão mal quando entrei naquele sítio ermo e frio, vi pessoas que nunca pensei ver, cruzei-me com polícias que conhecia mas que não me dizem nada, olham-me com desdém, como se eu fosse o maior dos criminosos, o mais procurado dos terroristas... Eu! Que não faço mal a ninguém, que até há bem pouco tempo enchia salas de espectáculo e cheguei a dar uns autógrafos no meio da rua como se fosse uma estrela de Hollywood. A estrela que brilha neste momento é a que está no céu, a que eu vi ontem à noite quando me deitava nas arcadas frias de uma praça no centro. Voltaram-me a fazer as mesmas perguntas, o que estava ali a fazer, estava a mando de quem, para que é que estava a arrumar carros, se estava a ganhar dinheiro para sopa ou para droga... RAIOS! Já disse que não me drogo, não estou a mando de ninguém, sou mais uma das muitas vítimas nesta cidade e neste país onde só reina quem é artista ou vigarista. Voltei a dizer que tinha sido músico mas a vida me deu uma bofetada, ao que o chefe Martins dizia:

- Isso é o que vocês dizem todos! Não passam de um chulos! Quando é que vais buscar o teu rendimento?

- Não tenho rendimento, não tenho nada! O que ganho gasto em comida, café e tabaco, que infelizmente voltei a fumar...

- Pois! A vida tem destas coisas...

Acabei por ficar detido algumas horas, quando voltei a ver a luz do dia desci até à beira-rio e chorei, chorei, chorei.... Tinha vergonha de me ver ao espelho, queria muito suicidar-me mas tenho medo para o fazer! Até nisso sou covarde! Sentei-me bem perto de um casal de japoneses, que exibiam as suas máquinas Canon com objectivas xpto... Ai! O que me passou pela cabeça: roubar para ter um tecto por uns tempos em Custóias, estava mesmo desesperado... Mas depois pensei melhor e deixei-os ficar por ali a contemplar a beleza daquela que já considerei ser "a minha cidade". Hoje considero a "minha casa". Estava tão sereno junto ao rio que me deixei ficar por ali até ao entardecer, subi a rua que ia dar à Estação de S. Bento e comi um hamburguer (mais uma vez...) com vista para o edifício da Câmara. Ainda estava a pensar onde ia dormir... Lembro-me do António me ter falado do "Coração da Cidade" que servia uma refeição quente uma vez por dia, que eu devia ir lá para comer uma refeição minimamente decente e buscar um cobertor para estas noites... que se esperam muito muito frias! Ainda não foi desta que fui ao "Coração da cidade" mas amanhã vou... Estará lá a minha salvação? Adormeci uma vez mais perto do Rivoli, não estava muita gente a assistir ao teatro, ou então saíram por outra porta que eu desconheço... Duas almas caridosas tiraram da carteira um euro e pensei:

- Já vai dar para tomar o pequeno-almoço! Uma boa refeição terei de fazer por dia, e eu dou muita importância ao pequeno-almoço...

Mas hoje, sinto-me um pouco mais em baixo, triste porque é hoje o dia de aniversário da minha Teresa... Onde andarás? Só de pensar que o ano passado fomos reviver uma das primeiras viagens que fizemos: Nova Iorque... Foi nessa viagem que eu perdi a cabeça e te levei a um concerto ao Carnegie Hall, onde actuou brilhantemente passado uns anos a Mariza, essa incrível e inconfundível voz do fado. Nunca mais me esqueço: gastei trezentos e cinquenta dólares nos bilhetes, fomos ver um concerto a quatro mãos: Mikhaïl Pletnev e Alexander Mogilevski. Foram momentos únicos... foi um sonho tornado realidade: ver um concerto de dois conceituados pianistas numa das melhores salas de espectáculo do mundo. Foi como uma segunda ou terceira lua-de-mel, foi mesmo muito bom: fomos só nós... levei a minha Canon e tu eras a minha modelo. Mal sabia eu que passado um ano estava nesta situação... Em que é que falhei Teresa? Podes-me dizer? Dá-me um sinal para que eu possa deixar de ser o actor principal nesta história... prefiro estar no lado do público, ao menos assisto à desgraça do lado de fora... Mas quem é que disse que a vida era justa?

Só os tolos é que acreditam nessa frase! Há tempos li um romance de um conceituado escritor português que se entitulava de "O amor é para os parvos"! Hoje pretendo mudar esse título para: "A vida de rua é para os que foram parvos...".

"Retrato frio" - parte 7 de... "Mais uma noite"

... Foi a segunda noite fora de casa, daquilo que todos chamamos de lar, custa-me tanto pensar que já tive um salão com um piano, uma sala de jantar com cadeiras confortáveis, uma sala de estar com música e livros... Agora, a minha sala são as arcadas na praça D. João I, o meu salão é a avenida dos Aliados, onde eu passei o dia de hoje. Não choveu, não estava o gélido frio de Dezembro, estava um sol típico de inverno, podia estar forte mas não aquecia... Arrumei carros novamente na zona do St.º António com o meu "colega" e partilhámos um almoço ali perto. Ainda hoje ele me perguntou o que eu fazia antes de ser isto que hoje sou... Não lhe disse que era músico, que enchia salas de espectáculo, que viajava em primeira classe, que tinha limousines à minha espera no aeroporto, disse-lhe apenas:

- Fui artista... mas não me perguntes mais nada sobre a minha vida...

- Desculpa! Não era minha intenção. Mas eu posso-te falar sobre a minha vida: olha, a minha vida passou a ser esta: há bem pouco tempo... Eu era advogado, estava em lisboa no CEJ para tirar o curso de juíz só que entretanto a minha filha adoeceu e a doença que ela teve, eu digo teve, porque faleceu o ano passado era rara, muito rara aliás, e eu empenhei quase todas as minhas economias para a levar para o estrangeiro... Não me resolveram o problema mas ficaram com muito dinheiro, a minha mulher foi-se abaixo e pôs baixa no emprego, acabou por ser substituída por uma rapariga ucraniana que mal sabe falar português, mas é muito bonita. Quando morreu a minha filha eu fiquei desesperado e tentei recuperar o meu emprego que até então estava de baixa, mas também puseram um rapaz novo no meu lugar, sabes como é: eu era advogado, tinha contactos previligiados na polícia judiciária aqui no Porto e quando dei por mim já estava mais do que metido nos meandros da droga. Lembras-te de ouvir falar do assassinato da Gisberta? Aquele travesti naquele edifício perto da avenida Fernão Magalhães?

- Sim, lembro-me bem!

- Pois é, eu fui das pessoas que presenciei o crime, eu estava nesse malfadado edifício a comprar a minha dose diária de heroína quando ouvi uns gritos, aproximei-me, aquilo era muito escuro e perigoso... Aproximei-me e então vi um grupo de miúdos a bater no pobre coitado, que já estava condenado à morte porque para além de toxicodependente tinha HIV, por isso tás a ver..

- Que cena! E o que fizeste?

- Nada pá! Eu não fui maluco ao ponto de ir ali para o meio deles. Ainda ficava eu também lá estendido... Vi-os a maltratarem o coitado e a atirarem-no para o fundo do poço, que supostamente era uma caixa de elevador. Eu fugi daquele lugar, queria-me salvar, custasse o que custasse. Entrei no primeiro café que vi aberto e gritei por socorro, para chamarem a polícia e uma ambulância, que tinha acontecido uma tragédia naquele prédio... Toda a gente sabia que eu era toxicodependente e toda a gente sabia que aquilo era um lugar povoado por travestis e drogados. Alguém gritava do fundo do café: "Eu sei o que tu queres, queres que o pessoal saia a correr para a rua para tu roubares o dinheiro da caixa...". Fiquei com uma raiva daquele senhor... e não o conhecia de lado nenhum, outros diziam "A polícia vai lá muitas vezes mas não têm coragem de fazer nada, este país é uma vergonha...". Conclusão: ninguém se acreditou em mim e o corpo permaneceu lá durante três dias... mas a polícia cercou o edifício e fazia várias passagens por lá. Eu fugi... a minha pessoa já não era bem vista pela polícia, eu já não era sequer o ex-advogado, era o toxicodependente António...

- E foi a partir daí que vieste para aqui?

- Sim! A minha vida como arrumador começou aqui, eu dantes não traficava, só consumia, a partir do momento que comecei a conhecer outras pessoas e a ter mais "contactos" fui ganhando mais e mais.... Isto depois é um vício pá! Não julgues que vai ser diferente contigo...

- Mas eu não me drogo!

- Pra já! Quando se vive na rua casa-se com a rua e com todos os males que ela traz. Eu também não me drogava: só conhecia os traficantes pá! Eu já andei atrás deles, eu não, os meus amigos da PJ...

- Mas António, nunca tentaste pelo menos sair disto...?

- Meu amigo, ainda estás muito verde. Conta-se pelos dedos os gajos que estão metidos nisto e saem. Há malta que eu conheço a quem lhes vendo produto que estão enterradas até ao pescoço e que não se importam de ficar presos uns dias, têm uma cama para dormir e um cobertor para as aquecer... Isto é fudido! Não conheces a vida da rua...

Aquelas palavras ficaram-me na cabeça: "Não conheces a vida da rua...". Quererei eu conhecê-la? Será que eu consigo voltar para trás? Puxar a "cassete" atrás e viver mais contidamente? Tantas questões coloco mas não tenho resposta... Se calhar não tenho remédio, é mesmo este o meu destino: ser homem sem tecto e sem rumo... Meu Deus, eu que já fui pianista... As minhas mãos não as reconheço, nem sequer lavando.... Que bicho me tornei! Que merda fui fazer...! Puta de vida!



Passei a noite nas arcadas da Praça D. João I, consegui receber umas esmolas de umas pessoas que saíam do teatro... valha-me o La Féria, que tem aqui gente... Esses trocos vão-me dar muito jeito para amanhã: voltei a fumar... mais um vício que eu quis e consegui deixar... A noite foi muito dura, apesar de ter vestido roupa muito quente que ainda tenho no saco não chegou... consegui arranjar no meio de entulho uns cartões para pousar no frio chão do Porto e "forrei" com fita isoladora... não que tivesse esperança que me isolasse do frio... mas ao menos que me ajudasse. Ouvi sirenes, buzinas (a meio da noite imaginem!) e um desastre aqui bem perto nos semáforos... olhei o céu do Porto e vi uma estrela cadente, pedi um desejo:

- Viver uma vida decente! De preferência antes da noite de vinte e quatro...!
Porto, 5 de Dezembro

"Retrato frio" - parte 6 de... "Não digas isso por favor"

... Estava longe de imaginar que hoje seria o pior dia e a mais fria noite da minha vida, nunca pensei (nem em pesadelos) chegar a este ponto. O Eduardo chegou a casa mais cedo do que o habitual, as minhas pernas não se perderam tanto como o habitual pelas ruas do meu Porto, à qual um dia chamei de "Porto de Abrigo"... Era mesmo isso que eu ia precisar mas nunca pensei que ia ser tão depressa, ou melhor, nunca pensei que isso fosse acontecer. O Eduardo entrou em casa e disse-me que ia sair de Portugal por uns tempos, não sabia quanto e que ia deixar a casa a um familiar, por isso, era o meu fim no conforto do lar. Nunca mais me esqueço, olhei-o nos olhos, com os meus lavados em lágrimas:

- Não me faças isto, por favor! Porque tens de ir? Logo agora que eu preciso de ti...

- Mário, não me ponhas pior do que já estou, ainda podes tomar um banho e eu arranjo-te as minhas roupas de inverno todas, vou amanhã para os Estados Unidos..

- Leva-me contigo! Começo lá uma nova vida, ninguém me conhece... Aqui já não sou o Mário que enchia salas e que as pessoas veneravam nas boémias Galerias e Foz Velha.

- Desculpa, tens de ir embora hoje.

- Para onde vou? Dormir em que sítio? Já não conheço a minha cidade, sinto-me um pedaço de mau cheiro neste pequeno mundo que é o Porto. Só te tenho a ti, não me faças isso...

- Desculpa-me, não quero fazer mas tens de ir.

Fiz as malas, arrumei tudo o que tinha meu e dele (que me ofereceu) tomei um último banho (sabe-se lá quando tomarei o próximo), hoje serei oficialmente, mas não o digo orgulhosamente, um sem abrigo do Porto, mais um dos seiscentos e oitenta e cinco... Ai! Que faço à minha vida? Se eu fosse forte atirava-me para a frente de um comboio mas nem isso tenho coragem para fazer. Durante o banho vieram-me à cabeça todos os bons momentos que vivi com o Eduardo pelas noitadas do Porto, pelas noites à conversa com inglesas e alemãs e depois deliciá-las com música, ora em minha casa, quando eu era solteiro, ou no Twins no velho piano de cauda Steinwag; os dias de ensaio, os poemas que ele escrevia e que me ligava, fosse a que horas fosse, meu Deus, e agora isto! SEM ABRIGO! Sem um tecto para me proteger, sem uma família para amar... Resta-me uns euros na carteira, tudo o que guardei "debaixo do colchão" de alguns concertos. Não tenho esperança nenhuma de recuperar o que me devem, mas agora não consigo pagar nem ao meu melhor amigo um jantar para me despedir...

Esta primeira noite vai ser a pior de todas: o frio aperta, a polícia ronda os lugares onde os sem abrigo se escondem, uma criança brinca indiferente com o barulho das ambulâncias rumo às urgências do St.º António. Para onde vou? Arcadas do tribunal? Fingo-me doente e arranjo uma cama pelo menos esta noite no SO? Sinto-me um animal abandonado, divago, vagueio, perco-me no meu Porto. Encostei-me a um banco nos jardins da Cordoaria, não preguei olho a noite toda... O amanhecer chegou devagar e com ele veio a chuva e o vento gélido de Dezembro. Ai! Será que me restam muitos dias como sem abrigo? Conseguirei sobreviver neste "mundo" da sobrevivência? Nunca pensei chegar a este ponto: arrumei carros durante a manhã, bem perto das consultas do hospital de St.º António, travei conhecimento com o António, aquele arrumador que por um ano não foi juíz... Arranjou-me um cigarro e deu-me lume. Nem o quente do café que tomei há minutos me aqueceu suficiente as mãos, quanto mais a alma. Não me sinto, nem física nem mentalmente forte para aguentar o que ainda agora começou e está para se agravar. O dinheiro que fiz deu-me para uma refeição económica para os lados dos Aliados: uma sopa quente, um chá quente (como bebida) e um prego mal amanhado mas que me soube pela vida. A tarde foi fértil em termos de "arrumação" de carros, ainda há pessoas que vêm de uma forma menos má os arrumadores, apenas estamos ali para os ajudar... Quem diria eu, que até há bem pouco tempo dava um euro a um sem abrigo para me ajudar a arrumar o carro hoje sou um deles! Que vergonha...! Não me olhei ao espelho quando fui à casa-de-banho do snack-bar para fazer a minha higiene pessoal: ainda tenho pasta dos dentes e a minha escova, o desodorizante está a acabar... A minha vontade de viver, sinceramente também...

Acabei por comer um hamburguer no MacDonald´s dos Aliados por me encher o estômago e ser barato. A noite, essa? Passei-a nas ruas da confusão, nas Galerias. Comprei um maço de tabaco (é dos poucos prazeres que ainda posso satisfazer) e o jornal roubei a uma senhora que adormeceu no café... Nunca me imaginei a fazer tal coisa, mas é certo que o fiz. Li as notícias do país:

- Portugal em crise!

- Marido mata mulher à facada por ciúmes do vizinho

- Porto vence em hóquei

- Viagem ao Brasil do Presidente X

Tudo isto que parecia banal, quando eu tinha o meu emprego, agora parecia-me ainda mais! Não tenho nojo do meu país, não tenho raiva do meu governo, só tenho pena de mim, por ter chegado onde cheguei e agora não saber o chão que pisei. A noite está a chegar e eu tenho medo... medo dela não passar. Amanhã é mais um dia, se lá chegar...



Porto, 4 de Dezembro de 2003

"Retrato frio" - parte 5 de...

"Minha velha e querida Praga..."

Foi com algum espanto, devo dizer (para quê mentir!?) que recebi um convite de uma sala incrível do mundo do espectáculo, a Ópera de Praga convidou-me para um recital que ia acontecer em Janeiro... Sempre tive Praga no meu coração, aliás, lembro-me que foi em Praga e na República Checa que passei uma das melhores férias da minha vida, com a Joana, a minha primeira namorada. Não me lembro de ter tido uma miúda como ela, era mesmo sensacional como pessoa e sobretudo como AMIGA. Até há bem pouco tempo ainda falava com ela quando vinha ao Porto jantávamos sempre e ficava em minha casa, até tomava conta do meu filho, pouco tempo depois de ele ter nascido para a Teresa poder assistir a um recital meu na Avenida da Boavista.



O recital que eu tinha de preparar era sobre autores e compositores checos, Kafka sempre foi um dos meus autores preferidos (em termos literários), em termos musicais conhecia poucos checos... mas lá fui investigar o que havia na biblioteca onde guardo, religiosamente e alfabeticamente as obras musicais. Lembro-me que liguei para a minha primeira professora de piano, a professora Helena do Conservatório de Música do Porto e ela lá me deu umas indicações sobre que obras e estudos tocar... Sempre gostei dela, muito atenta nos meus erros (isso era o lado menos positivo, pelo menos na minha tenra idade), aconselhou-me:



- Bedrich Smetana (por muitos considerado o PAI da música checa, foi ele o compositor da famosa peça "Má Vlast", traduzindo dava "Minha Pátria" e que evocava o Rio Moldava, o rio que atravessa Praga que é tão famoso...

- Antonin Dvorák (compositor checo do período romântico que usou nas suas obras muitas melodias populares da Morávia e da sua Boémia natal.


Escolhi o tema principal do Bedrich e de Antonin seleccionei "Danças Eslavas", eram temas bastante alegres e quis na altura convidar Sofy Vlag, uma pianista exímia no clássico e romântico... Encontrei-me com ela, por acaso numa noite do Porto, ela estava cá para fazer um recital com a Orquestra Nacional e eu andava a passear-me pela Foz. Era uma referência para mim, apesar de eu ser mais velho. Aceitou desde logo o convite... Eu estudei outra vez sobre Praga para saber onde ia voltar a passear, escolhi o hotel, fiz as malas com a Teresa e partimos... Já estávamos habituados a estas andanças mas estávamos longe de imaginar o que nos ia acontecer quando chegamos a Praga... Limousine, shouffer e suite presidencial. Foram os dias mais felizes das nossas vidas. Éramos o mundo, tínhamos o mundo aos pés... Bastava estalar o dedo que tínhamos o que queríamos. Jantámos por Praga no hotel na primeira noite, a viagem apesar de não ser muito longa foi atribulada... Voltámos a captar umas imagens na zona do Rio Moldava, com o incrível palácio no pano de fundo. Éramos mesmo apaixonados por aquela cidade e queríamos viver ao máximo aqueles momentos a dois, enquanto eu tinha um tempo... Foi então em Praga que falámos sobre o futuro, casar, ter filhos, ter uma casa com piscina, eram os nossos sonhos, iguais a tantos outros casais. Falámos sobre paixões antigas e aventuras, romances e paixões de verão, e eu contei-lhe sobre uma aventura em Brasília aquando da minha passagem pela capital do nosso país irmão para entoar os sons da "Garota de Ipanema" e outros temas do Tom Jobim e Vinicius de Moraes, na altura falei com Marília Gabriela para a "Rede Globo", tinha conhecido uma brasileira no bar do hotel, tomámos uma cerveja e mais umas caipirinhas e tivemos uma noite de paixão. A Teresa contou-me de um engate numa noite de verão no velho Swing na Foz com um italiano de seu nome Marcello. Fiquei tão curioso com a história que qunado cheguei ao quarto do hotel comecei a escrever algo sobre isso, sobre os romances de verão no tempo em que não se dizia a palavra NÃO!

Fiz o primeiro ensaio com Sofy Vlag na quinta-feira depois de almoço, tinha umas mãos como eu nunca tinha visto numa mulher... Dedos compridos, movimentos rápidos mas seguros, tensos mas suaves nas teclas do steinway que eu tinha pedido. Foi uma tarde agradável de trabalho, partilhámos segredos, descobrimos gostos em comum, ela também era do Futebol Clube do Porto e tinha uma curiosidade sobre a vida e obra de Smetana. Jantei com a Teresa e convidámos a Sofy para uma taça de champanhe no hotel depois do jantar. Ela compareceu imperetrivelmente às vinte e duas horas com o namorado e também músico, David. Foi um serão agradável que acabou no piano do hotel: um "concerto" a quatro mãos, eu e Sofy enquanto que a Teresa e David conversavam... Nunca fui possessivo nem quis ser controlador mas o que é certo é que senti o meu lugar ameaçado por algumas vezes... Eu sabia que a Teresa me amava mas podia uma amizade tornar-se numa "paixão numa noite de verão"... No caso nem podia ser porque estavamos em Janeiro... O recital foi incrível, fui muito bem recebido pelo público checo, que desde logo comecei a perceber que tinham algumas parecenças com o público do Norte do meu Portugal, o meu tão aclamado Porto. A noite correu tão bem que fui convidado a permanecer mais uns dias e fazer um concerto com a orquestra sinfónica de Praga, devo dizer, que esse era um dos meus sonhos: tocar com uma orquestra de renome internacional, não desfazendo a "minha" do Porto.

Foi nessa noite... na noite em que pensava que seria a nossa útlima noite que fizemos amor e foi nesse momento que percebemos: era altura de dar o nó. Aproveitámos a estadia em Praga e tratamos tudo às escondidas da família e dos amigos, quisemos ser níos a escolher tudo... Desde roupa a convidados. A minha velha e querida Praga ficaria marcada para sempre, novamente na minha vida. Foi aqui que tudo começou.... Que nós geramos uma família.

"Retrato frio" - parte 4 de...

Ainda tive de esperar largos minutos pelo Eduardo, não sei bem quanto tempo. Isto de estar na rua (e eu ainda não estou a 100% na rua, ainda tenho um tecto para viver, tem que se lhe diga. É mesmo triste ficar o dia a ver pessoas passar apressadas para o trabalho, e nós... divagarmos pela cidade sem rumo e sem objectivos. O Eduardo parou o carro mesmo à porta de casa, eu já estava com uma cara mais ou menos decente. Chegou à minha beira e disse:

- Desculpa pela demora!

- Não faz mal...! Disse-lhe com uma voz ainda tremida pelo susto e vergonha que senti por ter sido interrogado pela polícia... Eu! Um homem que até há bem pouco tempo era uma referência na minha cidade, hoje, sou um merdas que vagueia sem rumo em busca da sua felicidade... Como fui feliz! Entrámos no apartamento, fechei-me na casa de banho por largos minutos para chorar baixinho, tinha vergonha que me vissem assim, sempre tive! Nunca fui de chorar em frente às pessoas, nem mesmo no funeral do meu avô com quem tive uma relação muito próximo nos vinte e seis anos que o tive a meu lado... Lavei a cara, assoei-me, e dirigi-me à sala, onde o Eduardo já tinha uma cerveja "em meu nome"! Tive vergonha de lhe contar mas precisava mesmo de desabafar. Não me considero um sem abrigo (como já disse) mas o meu aspecto físico envelheceu muito desde que o mundo desabou, estava habituado a ouvir histórias de miséria na televisão mas sinceramente, quando ela nos bate à porta e deixamos de poder assistir a ela "do lado de fora" é bem mais complicado. Se pensar que há meia dúzia de dias era um homem realizado, feliz, hoje sinto-me um verdadeiro inútil, nada faço pela minha cidade, muito menos pela sociedade. O Eduardo ficou de boca aberta enquanto me ouvia a contar o sucedido, tive tanta vontade de chorar mas continuo a ser o mesmo covarde de sempre, prefiro chorar em privado para ninguém ver.

A noite? Essa, passei-a em claro e quando a manhã chegou voltou, pensava eu, o meu pesadelo, mas não. O Eduardo ia ficar em casa, por isso, não precisava de ir para a rua. Pedi-lhe emprestado uma lâmina nova e desfiz a minha barba. Olhei-me ao espelho depois do banho mas mesmo assim me era difícil reconhecer. Tomámos o pequeno-almoço ao som de música clássica, do recital que ele tinha gravado "clandestinamente": eu e constantin sandu em Budapeste! Esse, foi um verdadeiro recital, depois foi a vez do concerto aqui no Porto na casa da música. Por momentos, por já não saber quem sou, ouvia as notas soarem das colunas B&W da sala de jantar e nem sequer sabia distinguir uma nota das outras, para mim era tudo igual... Eram sons, esses que saíam de um Steinway de concerto, já não me recordo se tinha quatro ou seis metros de cauda. Lembro-me muito bem do check sound que fizemos, a sala ainda vazia.... Vazia estava a minha cabeça das emoções que agora sinto. Dantes não tinha problemas, não sabia o que era passar fome, não sabia o que era pedir... Costumava dizer: A música, vivia para a usar e usava-a para viver. Nunca pensei chegar a este ponto: não poder ter o meu piano (que tenho de facto saudades), não ter a minha casa, o meu sistema de som e o meu plasma... Como é possível em tão pouco tempo descer do Paraíso ao Inferno? Foi o terceiro dia como "sem-abrigo" no meu Porto sem sentido. Hoje talvez vá dar uma volta pela cidade quando for noite, com o Eduardo. Vou conhecer a realidade que um dia, cada vez mais me convenço, que será a minha. Mas não quero pensar muito nisso... Já estou mal o suficiente para prever um futuro pouco risonho, diria mesmo, NEGRO!

Quando a noite chegar sei que tenho uma cama de lavado para dormir... Amanhã? Quero acreditar que sim, mas não quero abusar de quem cresceu e se fez homem comigo, o Eduardo.

Começámos a nossa viagem pelo verdadeiro centro do Porto, lembro-me de ter a imagem do video-clip do meu antigo amigo Pedro cujo tema falava sobre os fantasmas, e esse video-clip foi gravado nas ruas do Porto, eram filmagens com sem-abrigos, no final da música aparecia a seguinte mensagem: Em Portugal, quase 9 mil pessoas dormem na rua. Só no Porto são 685... Este número impressiona, de facto. O que mais me assusta não é esse número voltar a crescer, porque infelizmente vivemos numa sociedade e num mundo em que se vive acima das possibilidades, só temos preocupação de ter um carro mais caro que o do vizinho, mesmo que tenhamos de passar fome, de passar férias no Brasil ou na Patagónia, mesmo que para isso tenhamos de nos endividar até ao pescoço...., eu infelizmente, caí no erro de viver acima das minhas possiblidades, mas o que mais me assusta é que possa vir a fazer parte desse número, dos tais 685. O primeiro sem-abrigo que abordámos chavama-se Pedro, um homem que toda a vida trabalhou e viveu da construção civil, um trabalho honesto como qualquer outro mas que infelizmente fechou portas a empresa onde trabalhava. Conta-nos com um brilho no olhar, apesar de já viver na rua há mais de dois anos, o quão importante foi na sua empresa. Foi responsável pelas obras em alguns edifícios da cidade, nomeadamente Casa da Música e o edifício transparente na zona da Foz. Trabalhou desde os quatorze anos, hoje, com quarenta e cinco olha a vida com preocupação e com apenas uma certeza: faz parte das pessoas que perderam tudo: família, casa, amigos... Estendeu a mão para pedir esmola, arrumou carros nas zonas mais movimentadas do Porto, esteve preso por tráfico de droga e saíu em liberdade para voltar à rua... Hoje continua a ser arrumador, e a sua casa são alpendres e arcadas espalhados pelo Porto. Diz, com alguma ironia: eu? Já vivi de frente para o mar.

O segundo sem-abrigo com quem falámos tinha uma história que nem em livro as pessoas acreditariam: estávamos perante um Dr. Exactamente! António, um arrumador que "ganhava" a vida em frente ao hospital de Stº António foi advogado de profissão, conta-nos mesmo que: Por um ano não foi juíz. Lembro-me que uma amiga minha, psicóloga clínica, e neuro psicóloga no Stº António me falou dele uma vez. Era um arrumador extremamente educado, não chateava as pessoas, estendia a mão, se as pessoas quisessem dar davam, senão ele virava as costas e fazia mais uns metros a pé... Foi mais uma história que me impressionou na altura, e hoje estava perante ele. A minha amiga, de seu nome Cátia sempre teve uma "veia" solidária muito apurada e como ganhava bem, apesar de tenra idade, ajudava no que podia os sem-abrigo, não se limitava a dar a moeda, porque a maior parte não as usa para comer, usa para comprar a dose diária de droga ou álcool. Lembro-me dela contar a história: um dia estava a chegar de manhã ao hospital e abordou o António, homem alto e de corpo esguio. Quis saber um pouco da sua história porque sempre o tinha visto como um "arrumador diferente", ao ouvir isso ele disse:

- Pois é, Dra. Cátia. Eu sou mesmo diferente. Em pouco mais de um ano perdi tudo... família, amigos, casa, emprego. Imagine que por um ano não fui juíz. A minha filha, que até então eu pensava ser uma criança saudável começou a ter uns problemas de saúde que depois se veio a confirmar que eram devido a relações sexuais sem protecção e com vários "personagens" da nossa urbe. A minha mulher nunca trabalhou e eu trabalhava e estava a fazer na altura os estudos no CEJ em Lisboa, ia uma vez por semana e vinha de comboio. Como advogado não ganhava tanto quanto isso e apesar de os processos que defendi serem processos que envolviam muito dinheiro... eu recebia uma pequena percentagem... Como conhecia (por ter colegas na PJ do Porto) os meandros da droga caí no mundo do dinheiro fácil. Fui apanhado, preso e quando saí da prisão há dois anos só tinha uma casa: a rua...

Voltámos para casa, com um nó na garganta e as mãos geladas. Era Dezembro, nem as já milhares de luzes de Natal nos aquecia... A noite estava muito fria, sentimos (mais eu) o conforto do lar, bebemos um chá quente e fomos dormir, antes de me deitar olhei o céu e vi uma estrela cadente. O meu desejo foi mais rápido que a velocidade desta: voltar a ser o mesmo... de preferência com quem fui feliz desde sempre.

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"Retrato frio" - parte 3 de...

Divaguei nessa noite pelo meu Porto, desta vez já sem o meu carro, tudo o que tinha, tudo o que o tempo e o trabalho me deram foram por água abaixo, nunca pensei, eu... Enquanto passava por mais uma das muitas lojas de música da minha cidade e olhava um piano de cauda da Kawaii lembrei-me do piano em que tive as primeiras aulas com o professor Steve em Nova Iorque, na NYMS, é estranho, não é? Ver alguém ao espelho que não conhecemos de maneira nenhuma, que para comer precisa de pedir, que arruma caros quando até à bem pouco tempo eles, arrumadores, não passavam de um bando de malandros que vagueavam pelo Porto ao som do "Chino Fininho", sempre com atenção à polícia que se passeava tranquilamente pelas ruas e becos da cidade...

Foi a primeira vez na minha vida que senti vergonha de quem sou, não do que fui e do que fiz, mas pelo que me aconteceu! Como pude eu pensar que a vida de artista iria ser um mar de rosas!? Quem me disse que um concerto era sinal de dinheiro em caixa! Tantas banhadas apanhei eu na minha vida que ao olhar para trás me rio. Nunca realizei o sonho de tocar no "meu" Coliseu com os grandes mestres da música do mundo, os grandes maestros como o português Vasco de Azevedo, tantos outros com quem eu me cruzava nos corredores das salas de espectáculo que frequentava. No tempo que estive em frente à montra da loja fez-me pensar sobre quanto é que as pessoas pagavam por um bilhete para me ouvir tocar numas teclas brancas e pretas num cenário quase perfeito num palco com inúmeros efeitos de luz. O som!? Tenho orgulho em dizer que esse era bem natural, nunca quis um micro por cima dos meus pianos. Sabia que as pessoas que estavam na sala estariam em silêncio, vinham para me ver, pagavam para me ouvir. Lembro-me também no dia em que esgotei a sala Suggia na Casa da Música, para em "dueto" com um grande músico portuense entoarmos temas de um passado que eu, com sorte, não cheguei a assistir. Lembro dos meus tios contarem a ida de tios meus para a guerra de África e Ultramar. Sentia, de cada vez que pensava nisso, um arrepio na espinha. O mesmo que agora sinto, mas não porque me lembrei, mas sim porque tenho frio... O meu querido amigo Eduardo estava em Lisboa e só chegava por volta da meia noite, e eu não quis ficar com a chave de casa, tinha medo que me roubassem na rua... As pessoas que um dia me bateram palmas, hoje fogem de mim, tentam a todo o custo não passar à minha beira, consideram-me mais um dos muitos sem-abrigo neste porto sem sentido. Estamos em Dezembro... Uma criança brinca indiferente a tudo o que se passa à volta, não quer saber se um carro aparece de repente, quer brincar para se abstrair do frio. A sua mãe, senhora de não muita idade (aparentava uns trinta) pedia uma esmola a quem por ela passasse. Sinto-me triste, vazio, mas ainda tenho um tecto para viver, apesar de a mim não pertencer.

No regresso a casa de Eduardo fui abordado pela polícia, foi a primeira vez na minha vida que tive medo de tal personagem da cidade, puseram-me no carro e levaram-me para a esquadra. Quando lá cheguei, algumas dezenas de jovens e velhos sem abrigo lutavam por um cobertor, enquanto outros eram interrogados sobre o que faziam naquele sítio, aquela hora... Quando foi a minha vez de falar perguntaram-me num tom brusco e medroso:

- Nome! Idade!

- Mário Barreiro, trinta e cinco anos.

Ouvi uma grande gargalhada, depois um dos inspectores da PJ dizia:

- Esse é músico! Não és o mestre das teclas. Lembras-te Marco, quando fomos ver o concerto dele no Batalha?

- Sim, lembro-me!

- Então o senhor diz que se chama Mário Barreiro. Tem a certeza que é mesmo o seu nome? Então se é músico, eu também fui. Que notas constituem um dó maior?

- Dó, mi, sol! Respondi sem pestanejar nem demorar...

- Olha Marco, um arrumador instruído! Então sabes responder a esta: a semínima é ou não uma nota musical?

- Não! É uma figura que representa o tempo em que uma nota deve soar!

Ficaram de boca aberta os inspectores. Mas não se fizeram rogados, continuaram a fazer perguntas de música e eu sempre a responder. Olharam para mim e disseram-me olhos nos olhos:

- Nós vamos-te apanhar! Vê o que andas a fazer pela cidade!

Nunca me senti tão humilhado na minha vida, nem mesmo naqueles espectáculos em que só tinha meia dúzia de pessoas a assistir, aquilo foi desumano. No caminho para casa do Eduardo chorei, chorei, chorei... Coloquei tantas questões a mim próprio que nem dei fé de um grave acidente ali bem perto dos Aliados... Ai, puta de vida!

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"Retrato frio" - parte 2 de...

"Porto, 2 de Dezembro de 2008

Esta data fica para sempre marcada como o início de uma nova etapa na minha vida... Sinto a vergonha de olhar para trás e abandonar a casa que em tempos julguei ser capaz de manter mas foi pura ilusão... Deixei lá tudo o que tinha, o meu cão ficou para trás, a minha Teresa e o nosso primeiro filho... Ela, foi para casa dos pais e levou o miúdo. Eu tenho vergonha de pedir ajuda a quem quer que seja, deixei de falar com os meus pais há uns anos largos, entretanto a minha mãe faleceu. Não estive no funeral, estava em Budapeste para dar um recital de música clássica também com um grande pianista romeno, de seu nome Constantin Sandu, não senti a dor que um filho sente, deixaram de ser meus pais, cortei relações em definitivo com eles... Lembro que cheguei a Budapeste, tinha uma mensagem do meu irmão a dizer que a mãe tinha sido internada e que seria bom eu estar no Hospital, mas eu não voltei para trás. Enviei uma mensagem a dizer onde estava e que eles já tinham deixado de ser a minha família, apenas contava com ele para o que desse e viesse.

Morava perto de Miguel Bombarda, numa das zonas históricas do Porto, lugar da boémia e das noites mal dormidas, ou por trabalho ou em lazer, ali pelos lados de Cedofeita, num café onde persistia um velho steinway com vista para uma parede onde Marlyn Monroe sorria... Grandes noites passámos nós, digo nós, músicos e boémios do Porto Velho, aquele Porto que os turistas não conhecem e que teimam em não querer conhecer... Pedi abrigo temporário a um grande amigo meu, Eduardo Brás de seu nome, era solteiro, tinha 30 anos e uma vida de boémio também, era poeta e escrevia umas colunas para um jornal do Porto e depois tinha o seu blog na internet. Raramente nos encontrávamos, mas lembro-me que por mais de uma vez me pediu para que lhe arranjasse bilhetes para um recital meu. Lembro-me muito bem do último concerto que ele assistiu: foi na fundação Copertino Miranda e depois fomos jantar uma francesinha ao tal café que tinha o piano e por lá continuamos noite dentro... Abriu-me as portas de sua casa como se fosse minha mas não queria abusar da sua boa vontade. Expliquei-lhe o que se passou, ao que ele me disse: - Mas eu não sabia que estavas com dificuldades financeiras!

- Não estava! Mas vivi sempre na ilusão que podia pagar pelo que fui comprando, lembras-te do Steinway que não tinha 2 anos? Comprei entretanto um Yamaha C4 e ia pagando ás prestações, depois comprei um carro para a Teresa a pronto, depois montei o estúdio lá perto... mais um investimento sem empréstimos... Quando fui a ver estava até ao pescoço a dívida...

- E os concertos?

- Dinheiro ainda não chegou e de alguns não sei se vou receber nem metade... Prometeram-me mundos e fundos e quem vai ao fundo sou eu...

- Vá tem calma, eu ajudo-te!

- Deixa-me ficar uns dias aqui até eu arranjar uma solução...!

- A casa é tua! Não te vou deixar ficar na rua...

- Tanto que lutei... A casa dos nossos sonhos fica agora nas mãos de um banco, o piano não o consegui pagar e eles vão-me lá buscar para a semana. Que vergonha!

- Vá! Não penses mais nisso, anda, vamos beber uma cerveja! Pago eu!

Escorreram-me as lágrimas pelo rosto ao ouvir estas palavras "Pago eu!". Em tempos eu convidava os amigos e eu é que pagava o jantar, e agora convidam-me para uma cerveja. Saí de casa e trouxe na carteira tudo o que tinha no meu cofre: 300 euros! É triste, mas é verdade! Amanhã vou tentar vender o meu relógio e a minha aliança, não faz sentido eu ter... As horas não preciso para nada, e a minha mulher... ficou para trás, para poder seguir a sua vida.... para a frente! A minha está a andar para trás, e hoje é só o primeiro de uma nova vida, seguramente, uma que não escolhi!

"Retrato frio" - parte 1 de....

A noite nem por isso vai alta, o trânsito na Baixa é quase inexistente... Está frio, uma criança brinca indiferente ao perigo da estrada ali ao lado... Sem perder a timidez e modo introspectivo que me é característico desde que me conheço como gente, se bem que hoje mesmo olhando ao espelho me é difícil reconhecer. A barba está comprida e feia, a minha cara está povoada de rugas, cada uma delas terá uma história para contar, o porquê da sua existência, se calhar, erros estúpidos que cometi, conheci pessoas incultas da vida que lutaram só para que fizessem da droga um modo de vida. Passo por São Lázaro em direcção aos Poveiros, desço Paços Manuel até dar de frente a um portão verde desbotado. Lá dentro espera-me uma sopa sem sal, uma sande de manteiga de ontem (mas que me sabe pela vida... e uma peça de fruta!

Sinto o "coração" da cidade pulsar mas o meu há muito que o deixei de sentir, se calhar já deixei de existir, sou apenas um corpo que divaga lentamente ao barulho insurdecedor dos motores e buzinas nesta cidade que eu amei, que um dia chamaram de Porto. Sinto por momentos um conforto, o conforto de um lar (algo que já não sei o que é há muito... o meu lar é a rua do Almada, a rua das Flores, a rua do Caldeireiro...). Há muito que não sei o que é uma cama feita de lavado, um bom banho antes de deitar, um tecto para viver, um cobertor para me proteger.Na mesma situação que eu está o Manel, o Quim, o Zé. Apesar de nomes diferentes todos temos a mesma história para contar: um dia tínhamos família, quando "acordámos" estávamos sozinhos na rua..., Nós somos personagens esquecidas num livro de prateleira dourada, nessa onde o príncipe encantado chega montado num cavalo branco e a bela donzela espera numa torre alta... tão alta como a dos Clérigos que agora vislumbro. Hoje é sexta-feira ou ainda é quinta? Passo nas ruas da confusão estendendo a mão à espera de uma moeda para comprar algo para lá de pão. Não é para álcool nem para droga, não sou delinquente, sou sim vítima inocente. Todos me olham com desdém, todos me dizem para me matar, para desaparecer... Faria isso de bom grado, deixava de sofrer. Procuro um abrigo numa noite que se adivinha de muito frio. Encostei-me a uma porta fechei os olhos e imaginei mais uma vez...o conforto!

O meu corpo sente-se cansado, imaginem o meu coração. Daria tudo o que tenho, o pouco que tenho... para voltar a ter aquele espaço que um dia foi nosso, que tem 3 letras e se chama LAR. A noite passa, passa devagar, o meu coração começa a fraquejar. Não sinto medo da tal barreira passar porque sei quando os olhos em definitivo fechar haverá alguém do outro lado e a mão vai esticar para me ajudar. Eu sou só mais um entre muitos sem abrigo neste Porto sem sentido. Divago, divaguei, hoje sei... Fui, sou e serei o homem que um dia acordou e se casou com uma mulher chamada RUA. Um casamento que durou tempo demais. Fecho os olhos e penso: vou partir mas antes vou-me de ti despedir... Amanhã dificilmente aparecerá o meu nome no jornal, não tenho identidade... Essa? Perdi-a um dia destes, há muitos anos na minha cidade!




Francisco Azevedo

"Retrato frio"

8 de Setembro 2010