sábado, 13 de novembro de 2010

"Retrato frio" - parte 3 de...

Divaguei nessa noite pelo meu Porto, desta vez já sem o meu carro, tudo o que tinha, tudo o que o tempo e o trabalho me deram foram por água abaixo, nunca pensei, eu... Enquanto passava por mais uma das muitas lojas de música da minha cidade e olhava um piano de cauda da Kawaii lembrei-me do piano em que tive as primeiras aulas com o professor Steve em Nova Iorque, na NYMS, é estranho, não é? Ver alguém ao espelho que não conhecemos de maneira nenhuma, que para comer precisa de pedir, que arruma caros quando até à bem pouco tempo eles, arrumadores, não passavam de um bando de malandros que vagueavam pelo Porto ao som do "Chino Fininho", sempre com atenção à polícia que se passeava tranquilamente pelas ruas e becos da cidade...

Foi a primeira vez na minha vida que senti vergonha de quem sou, não do que fui e do que fiz, mas pelo que me aconteceu! Como pude eu pensar que a vida de artista iria ser um mar de rosas!? Quem me disse que um concerto era sinal de dinheiro em caixa! Tantas banhadas apanhei eu na minha vida que ao olhar para trás me rio. Nunca realizei o sonho de tocar no "meu" Coliseu com os grandes mestres da música do mundo, os grandes maestros como o português Vasco de Azevedo, tantos outros com quem eu me cruzava nos corredores das salas de espectáculo que frequentava. No tempo que estive em frente à montra da loja fez-me pensar sobre quanto é que as pessoas pagavam por um bilhete para me ouvir tocar numas teclas brancas e pretas num cenário quase perfeito num palco com inúmeros efeitos de luz. O som!? Tenho orgulho em dizer que esse era bem natural, nunca quis um micro por cima dos meus pianos. Sabia que as pessoas que estavam na sala estariam em silêncio, vinham para me ver, pagavam para me ouvir. Lembro-me também no dia em que esgotei a sala Suggia na Casa da Música, para em "dueto" com um grande músico portuense entoarmos temas de um passado que eu, com sorte, não cheguei a assistir. Lembro dos meus tios contarem a ida de tios meus para a guerra de África e Ultramar. Sentia, de cada vez que pensava nisso, um arrepio na espinha. O mesmo que agora sinto, mas não porque me lembrei, mas sim porque tenho frio... O meu querido amigo Eduardo estava em Lisboa e só chegava por volta da meia noite, e eu não quis ficar com a chave de casa, tinha medo que me roubassem na rua... As pessoas que um dia me bateram palmas, hoje fogem de mim, tentam a todo o custo não passar à minha beira, consideram-me mais um dos muitos sem-abrigo neste porto sem sentido. Estamos em Dezembro... Uma criança brinca indiferente a tudo o que se passa à volta, não quer saber se um carro aparece de repente, quer brincar para se abstrair do frio. A sua mãe, senhora de não muita idade (aparentava uns trinta) pedia uma esmola a quem por ela passasse. Sinto-me triste, vazio, mas ainda tenho um tecto para viver, apesar de a mim não pertencer.

No regresso a casa de Eduardo fui abordado pela polícia, foi a primeira vez na minha vida que tive medo de tal personagem da cidade, puseram-me no carro e levaram-me para a esquadra. Quando lá cheguei, algumas dezenas de jovens e velhos sem abrigo lutavam por um cobertor, enquanto outros eram interrogados sobre o que faziam naquele sítio, aquela hora... Quando foi a minha vez de falar perguntaram-me num tom brusco e medroso:

- Nome! Idade!

- Mário Barreiro, trinta e cinco anos.

Ouvi uma grande gargalhada, depois um dos inspectores da PJ dizia:

- Esse é músico! Não és o mestre das teclas. Lembras-te Marco, quando fomos ver o concerto dele no Batalha?

- Sim, lembro-me!

- Então o senhor diz que se chama Mário Barreiro. Tem a certeza que é mesmo o seu nome? Então se é músico, eu também fui. Que notas constituem um dó maior?

- Dó, mi, sol! Respondi sem pestanejar nem demorar...

- Olha Marco, um arrumador instruído! Então sabes responder a esta: a semínima é ou não uma nota musical?

- Não! É uma figura que representa o tempo em que uma nota deve soar!

Ficaram de boca aberta os inspectores. Mas não se fizeram rogados, continuaram a fazer perguntas de música e eu sempre a responder. Olharam para mim e disseram-me olhos nos olhos:

- Nós vamos-te apanhar! Vê o que andas a fazer pela cidade!

Nunca me senti tão humilhado na minha vida, nem mesmo naqueles espectáculos em que só tinha meia dúzia de pessoas a assistir, aquilo foi desumano. No caminho para casa do Eduardo chorei, chorei, chorei... Coloquei tantas questões a mim próprio que nem dei fé de um grave acidente ali bem perto dos Aliados... Ai, puta de vida!

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