sábado, 13 de novembro de 2010

"Retrato frio" - parte 4 de...

Ainda tive de esperar largos minutos pelo Eduardo, não sei bem quanto tempo. Isto de estar na rua (e eu ainda não estou a 100% na rua, ainda tenho um tecto para viver, tem que se lhe diga. É mesmo triste ficar o dia a ver pessoas passar apressadas para o trabalho, e nós... divagarmos pela cidade sem rumo e sem objectivos. O Eduardo parou o carro mesmo à porta de casa, eu já estava com uma cara mais ou menos decente. Chegou à minha beira e disse:

- Desculpa pela demora!

- Não faz mal...! Disse-lhe com uma voz ainda tremida pelo susto e vergonha que senti por ter sido interrogado pela polícia... Eu! Um homem que até há bem pouco tempo era uma referência na minha cidade, hoje, sou um merdas que vagueia sem rumo em busca da sua felicidade... Como fui feliz! Entrámos no apartamento, fechei-me na casa de banho por largos minutos para chorar baixinho, tinha vergonha que me vissem assim, sempre tive! Nunca fui de chorar em frente às pessoas, nem mesmo no funeral do meu avô com quem tive uma relação muito próximo nos vinte e seis anos que o tive a meu lado... Lavei a cara, assoei-me, e dirigi-me à sala, onde o Eduardo já tinha uma cerveja "em meu nome"! Tive vergonha de lhe contar mas precisava mesmo de desabafar. Não me considero um sem abrigo (como já disse) mas o meu aspecto físico envelheceu muito desde que o mundo desabou, estava habituado a ouvir histórias de miséria na televisão mas sinceramente, quando ela nos bate à porta e deixamos de poder assistir a ela "do lado de fora" é bem mais complicado. Se pensar que há meia dúzia de dias era um homem realizado, feliz, hoje sinto-me um verdadeiro inútil, nada faço pela minha cidade, muito menos pela sociedade. O Eduardo ficou de boca aberta enquanto me ouvia a contar o sucedido, tive tanta vontade de chorar mas continuo a ser o mesmo covarde de sempre, prefiro chorar em privado para ninguém ver.

A noite? Essa, passei-a em claro e quando a manhã chegou voltou, pensava eu, o meu pesadelo, mas não. O Eduardo ia ficar em casa, por isso, não precisava de ir para a rua. Pedi-lhe emprestado uma lâmina nova e desfiz a minha barba. Olhei-me ao espelho depois do banho mas mesmo assim me era difícil reconhecer. Tomámos o pequeno-almoço ao som de música clássica, do recital que ele tinha gravado "clandestinamente": eu e constantin sandu em Budapeste! Esse, foi um verdadeiro recital, depois foi a vez do concerto aqui no Porto na casa da música. Por momentos, por já não saber quem sou, ouvia as notas soarem das colunas B&W da sala de jantar e nem sequer sabia distinguir uma nota das outras, para mim era tudo igual... Eram sons, esses que saíam de um Steinway de concerto, já não me recordo se tinha quatro ou seis metros de cauda. Lembro-me muito bem do check sound que fizemos, a sala ainda vazia.... Vazia estava a minha cabeça das emoções que agora sinto. Dantes não tinha problemas, não sabia o que era passar fome, não sabia o que era pedir... Costumava dizer: A música, vivia para a usar e usava-a para viver. Nunca pensei chegar a este ponto: não poder ter o meu piano (que tenho de facto saudades), não ter a minha casa, o meu sistema de som e o meu plasma... Como é possível em tão pouco tempo descer do Paraíso ao Inferno? Foi o terceiro dia como "sem-abrigo" no meu Porto sem sentido. Hoje talvez vá dar uma volta pela cidade quando for noite, com o Eduardo. Vou conhecer a realidade que um dia, cada vez mais me convenço, que será a minha. Mas não quero pensar muito nisso... Já estou mal o suficiente para prever um futuro pouco risonho, diria mesmo, NEGRO!

Quando a noite chegar sei que tenho uma cama de lavado para dormir... Amanhã? Quero acreditar que sim, mas não quero abusar de quem cresceu e se fez homem comigo, o Eduardo.

Começámos a nossa viagem pelo verdadeiro centro do Porto, lembro-me de ter a imagem do video-clip do meu antigo amigo Pedro cujo tema falava sobre os fantasmas, e esse video-clip foi gravado nas ruas do Porto, eram filmagens com sem-abrigos, no final da música aparecia a seguinte mensagem: Em Portugal, quase 9 mil pessoas dormem na rua. Só no Porto são 685... Este número impressiona, de facto. O que mais me assusta não é esse número voltar a crescer, porque infelizmente vivemos numa sociedade e num mundo em que se vive acima das possibilidades, só temos preocupação de ter um carro mais caro que o do vizinho, mesmo que tenhamos de passar fome, de passar férias no Brasil ou na Patagónia, mesmo que para isso tenhamos de nos endividar até ao pescoço...., eu infelizmente, caí no erro de viver acima das minhas possiblidades, mas o que mais me assusta é que possa vir a fazer parte desse número, dos tais 685. O primeiro sem-abrigo que abordámos chavama-se Pedro, um homem que toda a vida trabalhou e viveu da construção civil, um trabalho honesto como qualquer outro mas que infelizmente fechou portas a empresa onde trabalhava. Conta-nos com um brilho no olhar, apesar de já viver na rua há mais de dois anos, o quão importante foi na sua empresa. Foi responsável pelas obras em alguns edifícios da cidade, nomeadamente Casa da Música e o edifício transparente na zona da Foz. Trabalhou desde os quatorze anos, hoje, com quarenta e cinco olha a vida com preocupação e com apenas uma certeza: faz parte das pessoas que perderam tudo: família, casa, amigos... Estendeu a mão para pedir esmola, arrumou carros nas zonas mais movimentadas do Porto, esteve preso por tráfico de droga e saíu em liberdade para voltar à rua... Hoje continua a ser arrumador, e a sua casa são alpendres e arcadas espalhados pelo Porto. Diz, com alguma ironia: eu? Já vivi de frente para o mar.

O segundo sem-abrigo com quem falámos tinha uma história que nem em livro as pessoas acreditariam: estávamos perante um Dr. Exactamente! António, um arrumador que "ganhava" a vida em frente ao hospital de Stº António foi advogado de profissão, conta-nos mesmo que: Por um ano não foi juíz. Lembro-me que uma amiga minha, psicóloga clínica, e neuro psicóloga no Stº António me falou dele uma vez. Era um arrumador extremamente educado, não chateava as pessoas, estendia a mão, se as pessoas quisessem dar davam, senão ele virava as costas e fazia mais uns metros a pé... Foi mais uma história que me impressionou na altura, e hoje estava perante ele. A minha amiga, de seu nome Cátia sempre teve uma "veia" solidária muito apurada e como ganhava bem, apesar de tenra idade, ajudava no que podia os sem-abrigo, não se limitava a dar a moeda, porque a maior parte não as usa para comer, usa para comprar a dose diária de droga ou álcool. Lembro-me dela contar a história: um dia estava a chegar de manhã ao hospital e abordou o António, homem alto e de corpo esguio. Quis saber um pouco da sua história porque sempre o tinha visto como um "arrumador diferente", ao ouvir isso ele disse:

- Pois é, Dra. Cátia. Eu sou mesmo diferente. Em pouco mais de um ano perdi tudo... família, amigos, casa, emprego. Imagine que por um ano não fui juíz. A minha filha, que até então eu pensava ser uma criança saudável começou a ter uns problemas de saúde que depois se veio a confirmar que eram devido a relações sexuais sem protecção e com vários "personagens" da nossa urbe. A minha mulher nunca trabalhou e eu trabalhava e estava a fazer na altura os estudos no CEJ em Lisboa, ia uma vez por semana e vinha de comboio. Como advogado não ganhava tanto quanto isso e apesar de os processos que defendi serem processos que envolviam muito dinheiro... eu recebia uma pequena percentagem... Como conhecia (por ter colegas na PJ do Porto) os meandros da droga caí no mundo do dinheiro fácil. Fui apanhado, preso e quando saí da prisão há dois anos só tinha uma casa: a rua...

Voltámos para casa, com um nó na garganta e as mãos geladas. Era Dezembro, nem as já milhares de luzes de Natal nos aquecia... A noite estava muito fria, sentimos (mais eu) o conforto do lar, bebemos um chá quente e fomos dormir, antes de me deitar olhei o céu e vi uma estrela cadente. O meu desejo foi mais rápido que a velocidade desta: voltar a ser o mesmo... de preferência com quem fui feliz desde sempre.

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