sábado, 13 de novembro de 2010

"Retrato frio" - parte 7 de... "Mais uma noite"

... Foi a segunda noite fora de casa, daquilo que todos chamamos de lar, custa-me tanto pensar que já tive um salão com um piano, uma sala de jantar com cadeiras confortáveis, uma sala de estar com música e livros... Agora, a minha sala são as arcadas na praça D. João I, o meu salão é a avenida dos Aliados, onde eu passei o dia de hoje. Não choveu, não estava o gélido frio de Dezembro, estava um sol típico de inverno, podia estar forte mas não aquecia... Arrumei carros novamente na zona do St.º António com o meu "colega" e partilhámos um almoço ali perto. Ainda hoje ele me perguntou o que eu fazia antes de ser isto que hoje sou... Não lhe disse que era músico, que enchia salas de espectáculo, que viajava em primeira classe, que tinha limousines à minha espera no aeroporto, disse-lhe apenas:

- Fui artista... mas não me perguntes mais nada sobre a minha vida...

- Desculpa! Não era minha intenção. Mas eu posso-te falar sobre a minha vida: olha, a minha vida passou a ser esta: há bem pouco tempo... Eu era advogado, estava em lisboa no CEJ para tirar o curso de juíz só que entretanto a minha filha adoeceu e a doença que ela teve, eu digo teve, porque faleceu o ano passado era rara, muito rara aliás, e eu empenhei quase todas as minhas economias para a levar para o estrangeiro... Não me resolveram o problema mas ficaram com muito dinheiro, a minha mulher foi-se abaixo e pôs baixa no emprego, acabou por ser substituída por uma rapariga ucraniana que mal sabe falar português, mas é muito bonita. Quando morreu a minha filha eu fiquei desesperado e tentei recuperar o meu emprego que até então estava de baixa, mas também puseram um rapaz novo no meu lugar, sabes como é: eu era advogado, tinha contactos previligiados na polícia judiciária aqui no Porto e quando dei por mim já estava mais do que metido nos meandros da droga. Lembras-te de ouvir falar do assassinato da Gisberta? Aquele travesti naquele edifício perto da avenida Fernão Magalhães?

- Sim, lembro-me bem!

- Pois é, eu fui das pessoas que presenciei o crime, eu estava nesse malfadado edifício a comprar a minha dose diária de heroína quando ouvi uns gritos, aproximei-me, aquilo era muito escuro e perigoso... Aproximei-me e então vi um grupo de miúdos a bater no pobre coitado, que já estava condenado à morte porque para além de toxicodependente tinha HIV, por isso tás a ver..

- Que cena! E o que fizeste?

- Nada pá! Eu não fui maluco ao ponto de ir ali para o meio deles. Ainda ficava eu também lá estendido... Vi-os a maltratarem o coitado e a atirarem-no para o fundo do poço, que supostamente era uma caixa de elevador. Eu fugi daquele lugar, queria-me salvar, custasse o que custasse. Entrei no primeiro café que vi aberto e gritei por socorro, para chamarem a polícia e uma ambulância, que tinha acontecido uma tragédia naquele prédio... Toda a gente sabia que eu era toxicodependente e toda a gente sabia que aquilo era um lugar povoado por travestis e drogados. Alguém gritava do fundo do café: "Eu sei o que tu queres, queres que o pessoal saia a correr para a rua para tu roubares o dinheiro da caixa...". Fiquei com uma raiva daquele senhor... e não o conhecia de lado nenhum, outros diziam "A polícia vai lá muitas vezes mas não têm coragem de fazer nada, este país é uma vergonha...". Conclusão: ninguém se acreditou em mim e o corpo permaneceu lá durante três dias... mas a polícia cercou o edifício e fazia várias passagens por lá. Eu fugi... a minha pessoa já não era bem vista pela polícia, eu já não era sequer o ex-advogado, era o toxicodependente António...

- E foi a partir daí que vieste para aqui?

- Sim! A minha vida como arrumador começou aqui, eu dantes não traficava, só consumia, a partir do momento que comecei a conhecer outras pessoas e a ter mais "contactos" fui ganhando mais e mais.... Isto depois é um vício pá! Não julgues que vai ser diferente contigo...

- Mas eu não me drogo!

- Pra já! Quando se vive na rua casa-se com a rua e com todos os males que ela traz. Eu também não me drogava: só conhecia os traficantes pá! Eu já andei atrás deles, eu não, os meus amigos da PJ...

- Mas António, nunca tentaste pelo menos sair disto...?

- Meu amigo, ainda estás muito verde. Conta-se pelos dedos os gajos que estão metidos nisto e saem. Há malta que eu conheço a quem lhes vendo produto que estão enterradas até ao pescoço e que não se importam de ficar presos uns dias, têm uma cama para dormir e um cobertor para as aquecer... Isto é fudido! Não conheces a vida da rua...

Aquelas palavras ficaram-me na cabeça: "Não conheces a vida da rua...". Quererei eu conhecê-la? Será que eu consigo voltar para trás? Puxar a "cassete" atrás e viver mais contidamente? Tantas questões coloco mas não tenho resposta... Se calhar não tenho remédio, é mesmo este o meu destino: ser homem sem tecto e sem rumo... Meu Deus, eu que já fui pianista... As minhas mãos não as reconheço, nem sequer lavando.... Que bicho me tornei! Que merda fui fazer...! Puta de vida!



Passei a noite nas arcadas da Praça D. João I, consegui receber umas esmolas de umas pessoas que saíam do teatro... valha-me o La Féria, que tem aqui gente... Esses trocos vão-me dar muito jeito para amanhã: voltei a fumar... mais um vício que eu quis e consegui deixar... A noite foi muito dura, apesar de ter vestido roupa muito quente que ainda tenho no saco não chegou... consegui arranjar no meio de entulho uns cartões para pousar no frio chão do Porto e "forrei" com fita isoladora... não que tivesse esperança que me isolasse do frio... mas ao menos que me ajudasse. Ouvi sirenes, buzinas (a meio da noite imaginem!) e um desastre aqui bem perto nos semáforos... olhei o céu do Porto e vi uma estrela cadente, pedi um desejo:

- Viver uma vida decente! De preferência antes da noite de vinte e quatro...!
Porto, 5 de Dezembro

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