sábado, 13 de novembro de 2010

"Retrato frio" - parte 8 de... "Mais uma noite"

Porto, 6 de Dezembro

Foi a segunda vez na minha vida, a segunda como sem abrigo neste Porto sem sentido que fui para a esquadra da Polícia, no caso, a décima sétima esquadra, ali bem perto da Avenida da Boavista... Estava com o António na rua do costume (parece mal dizer isto) e chegou a polícia em duas carrinhas e puseram-nos numa espécie de uma "jaula", fui mais uma vez identificado e voltaram a não acreditar quem eu era, já não tenho bilhete de identidade. Esse perdi-o, deixei-o em qualquer lado, até porque infelizmente já não sou ninguém... Já fui!

Senti-me tão mal quando entrei naquele sítio ermo e frio, vi pessoas que nunca pensei ver, cruzei-me com polícias que conhecia mas que não me dizem nada, olham-me com desdém, como se eu fosse o maior dos criminosos, o mais procurado dos terroristas... Eu! Que não faço mal a ninguém, que até há bem pouco tempo enchia salas de espectáculo e cheguei a dar uns autógrafos no meio da rua como se fosse uma estrela de Hollywood. A estrela que brilha neste momento é a que está no céu, a que eu vi ontem à noite quando me deitava nas arcadas frias de uma praça no centro. Voltaram-me a fazer as mesmas perguntas, o que estava ali a fazer, estava a mando de quem, para que é que estava a arrumar carros, se estava a ganhar dinheiro para sopa ou para droga... RAIOS! Já disse que não me drogo, não estou a mando de ninguém, sou mais uma das muitas vítimas nesta cidade e neste país onde só reina quem é artista ou vigarista. Voltei a dizer que tinha sido músico mas a vida me deu uma bofetada, ao que o chefe Martins dizia:

- Isso é o que vocês dizem todos! Não passam de um chulos! Quando é que vais buscar o teu rendimento?

- Não tenho rendimento, não tenho nada! O que ganho gasto em comida, café e tabaco, que infelizmente voltei a fumar...

- Pois! A vida tem destas coisas...

Acabei por ficar detido algumas horas, quando voltei a ver a luz do dia desci até à beira-rio e chorei, chorei, chorei.... Tinha vergonha de me ver ao espelho, queria muito suicidar-me mas tenho medo para o fazer! Até nisso sou covarde! Sentei-me bem perto de um casal de japoneses, que exibiam as suas máquinas Canon com objectivas xpto... Ai! O que me passou pela cabeça: roubar para ter um tecto por uns tempos em Custóias, estava mesmo desesperado... Mas depois pensei melhor e deixei-os ficar por ali a contemplar a beleza daquela que já considerei ser "a minha cidade". Hoje considero a "minha casa". Estava tão sereno junto ao rio que me deixei ficar por ali até ao entardecer, subi a rua que ia dar à Estação de S. Bento e comi um hamburguer (mais uma vez...) com vista para o edifício da Câmara. Ainda estava a pensar onde ia dormir... Lembro-me do António me ter falado do "Coração da Cidade" que servia uma refeição quente uma vez por dia, que eu devia ir lá para comer uma refeição minimamente decente e buscar um cobertor para estas noites... que se esperam muito muito frias! Ainda não foi desta que fui ao "Coração da cidade" mas amanhã vou... Estará lá a minha salvação? Adormeci uma vez mais perto do Rivoli, não estava muita gente a assistir ao teatro, ou então saíram por outra porta que eu desconheço... Duas almas caridosas tiraram da carteira um euro e pensei:

- Já vai dar para tomar o pequeno-almoço! Uma boa refeição terei de fazer por dia, e eu dou muita importância ao pequeno-almoço...

Mas hoje, sinto-me um pouco mais em baixo, triste porque é hoje o dia de aniversário da minha Teresa... Onde andarás? Só de pensar que o ano passado fomos reviver uma das primeiras viagens que fizemos: Nova Iorque... Foi nessa viagem que eu perdi a cabeça e te levei a um concerto ao Carnegie Hall, onde actuou brilhantemente passado uns anos a Mariza, essa incrível e inconfundível voz do fado. Nunca mais me esqueço: gastei trezentos e cinquenta dólares nos bilhetes, fomos ver um concerto a quatro mãos: Mikhaïl Pletnev e Alexander Mogilevski. Foram momentos únicos... foi um sonho tornado realidade: ver um concerto de dois conceituados pianistas numa das melhores salas de espectáculo do mundo. Foi como uma segunda ou terceira lua-de-mel, foi mesmo muito bom: fomos só nós... levei a minha Canon e tu eras a minha modelo. Mal sabia eu que passado um ano estava nesta situação... Em que é que falhei Teresa? Podes-me dizer? Dá-me um sinal para que eu possa deixar de ser o actor principal nesta história... prefiro estar no lado do público, ao menos assisto à desgraça do lado de fora... Mas quem é que disse que a vida era justa?

Só os tolos é que acreditam nessa frase! Há tempos li um romance de um conceituado escritor português que se entitulava de "O amor é para os parvos"! Hoje pretendo mudar esse título para: "A vida de rua é para os que foram parvos...".

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