quinta-feira, 17 de maio de 2012
Uma varanda para o rio
- Desculpa, mas agora não percebi...!
- O quê?
- O que me disseste. Primeiro dizes para não te esquecer e assim de um momento para o outro perguntas o nome e não sabes quem sou.
- Mas quem te disse isso? Não fui eu...
- Desculpa mas foste.
- O que se passa comigo? - Enquanto soluçavas eu amparei-te num abraço, estavas assustado e eu comecei a ficar por te ver assim. Se calhar é melhor recuar um pouco no tempo e vermos como tudo ficou diferente.
- O pai está doente, não se dá conta?
- Eu estou óptimo! Sinto-me dez anos mais novo. Mas olha, o que faz aquela flor ali no chão?
- Paizinho, vamo-nos acalmar. É um vaso.
- O que é isso?
- É para deixar as plantas lá. Vamos fazer um teste, quer?
- Um teste? De quê?
- Vou-lhe fazer umas perguntas, assim vai-me respondendo com sim, não ou talvez.
- Vou tentar...
- Sabe quem sou?
- Sei.
- Está bom tempo?
- O rio está lindo...
- Não pai! Não foi isso que lhe perguntei. Diga-me só sim, não ou talvez... Está bom tempo?
Desataste num pranto, falando mal sobre o teu pai, insultaste a tua mãe, minha avó que sempre amaste e dizias que o teu cão era estúpido, que não sabia voltar para casa.
- Tail! Onde estás?
- Pai... já não tens esse cão, foi enterrado há quatro anos depois de dois anos a sofrer...
- Preciso de o ver! Onde está?
- Então, não te lembras? Está ali naquela árvore, perto do rio onde ele sempre gostou de estar. Ainda me lembro que o ia buscar à garagem e o trazia para o meu quarto. Ficavas chateado comigo?
- Não, mas a tua mãe sim.
- Como te lembras de tanta coisa de há muitos anos e de coisas simples não?
Fizeste um silêncio perturbador, querias sair dali o mais depressa possível. Olhaste para mim com vontade de me pedir ajuda e ao mesmo tempo desculpa mas nada disseste. O teu ar assustado deu-me vontade de chorar, de pedir ajuda, mas estamos longe de tudo e de todos. Desde que a mãe morreu e tu quiseste sair da casa da cidade mudaste para o campo e permaneceste, ainda que com poucas condições.
- Pai, o que é feito de ti?
- Estou com frio...
- Vá! Vamos para dentro?
- E se chega o Tail?
- Não te preocupes... eu vejo-o chegar e abro a porta, ainda tenho o meu quarto lá em cima arranjado.
- Queres ficar cá? Podia preparar algo para nós...
- Sim, fico. Quero um chá. Vou ligar a lareira.
- Eu vou à cozinha buscar o que me pediste.
Acendi a lareira e tu, voltaste com uma fatia dura de pão.
- Está bom assim?
- Sim Pai, obrigado! Era mesmo isto que eu queria.
O silêncio que fizeste foi perturbador, eu não dissera nada de errado. Olhaste mais uma vez para mim com um ar agoniado, triste com o que se passava à tua volta.
- Queres que te ajude a vestir o pijama?
- Não. Eu ainda sei arranjar-me sozinho.
- Ainda assim eu vou contigo. Já viste o tempo que passou desde que estivemos todos juntos nesta casa?
- Ainda o teu cão era vivo e eu namorava a tua mãe. Há quanto tempo é que...?
- Fez ontem dois anos. Mas não vamos ficar a falar de coisas tristes. Vamos falar sobre ti.
- Que queres que diga? Pouco ou nada sei...
- Vá Velhote, faz um esforço...
- Para que serve isto que está ali no chão?
- Onde? No alpendre?
- São flores?
- Sim, são!
- E estão no chão?
- Caíram com o vento.
- Vou lá pô-las de novo em cima do parapeito. A tua mãe ainda fica chateada comigo por vê-las ali.
- Pai, a mãe já não volta.
- Então e eu?
- Estás aqui comigo, ainda preciso muito de ti...
- Uiui!
- Que foi isso?
- Nada! Estou a chamar o Tail!
- Vá... o Tail está com a mãe.
- Não o posso ver?
- Agora não, talvez amanhã de manhã te leve a passear junto ao rio...
- Que faz ele?
- Dorme descansado...
- Gostava tanto de fazer o mesmo. Achas que deva regar a planta?
- Não te preocupes, eu faço isso.
- Vou-me deitar, antes que a tua mãe chegue...
- Fazes bem! Eu trato de tudo.
- Obrigado Filho. Obrigado...
Saíste da sala em direcção ao quarto, deitaste-te com a roupa que tinhas colada ao corpo. Olhaste pela janela e viste a lua a brilhar... O rio estava calmo, passei pelo teu quarto e falavas sozinho:
- Maria, o nosso filho pensa que estou maluco. Mas tu sabes que não é verdade. Porque não me levas para a tua beira? Estou certo que o Tail tem saudades minhas, aquele maroto. Lembras-te quando subia as escadas para dormir no quarto do nosso filho?
Fechei-me no quarto e chorei, como uma criança... Não reconheci o meu velho pai, já não é ele, é apenas um corpo de alguém que já foi... Mas eu não deixarei de ser...
Francisco Milheiro "Recordações de uma aldeia"
Maio 2012
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