sábado, 21 de julho de 2012

Cadeira na janela

Costumava ver o meu avô sentado naquela cadeira junto à janela do quarto. A vista não era propriamente deslumbrante, vivia na cidade, no centro nevrálgico, carros passavam quase a um ritmo constante de dez por minuto. O meu avô contara-os no tempo em que já pouco ou nada fazia. Deitado na cama sorria para mim quando o visitava. Escrevia nos tempos em que a dor pouco o atormentava. Eu não vivia na mesma cidade, a avó não cheguei a conhecer, partiu pouco tempo depois de eu nascer. Mas o que vivera com o meu avô foi mais do que suficiente para que a cadeira vazia me fizesse confusão. Visitara-o nessa semana todos os dias, ficámos horas à conversa, tinha sempre a sua piada ou conselho para me dar. Nunca percebi o que ele quis fazer, pôr termo a tudo o que era em mim: uma vida. Ele decidiu a forma mais digna de partir, para junto do seu amor, a sua Josefina de sempre. Um dia cheguei a casa e ele disse-me: 

- Hoje, vou-te deixar sentar nessa cadeira. Quero fazer um desenho teu e quero que o guardes para sempre. Podes guardar como se fosse um segredo só nosso. Posso-te pedir antes uma coisa? 
- Sim avô, diz. 
- Nunca sejas incorrecto mesmo que essas pessoas mereçam. Terás a tua recompensa quando eles estiverem no chão, vais poder olhá-los de cima. 
- Não percebo o que me queres dizer, mas vou fazer o que me estás a pedir. 
- Sim, com o tempo vais perceber estas palavras. Agora deixa-te ficar aí a olhar pela janela. 

Olhei, e por momentos consegui perceber a vontade que o meu avô tinha de ficar ali sentado a olhar o mundo da cidade lá fora. Via pessoas caminharem para lojas, cafés, os mais pequenos jogavam à bola no jardim em frente. Guardei o desenho que o avô me fizera e disse-lhe adeus. Corrigiu-me, disse-me: 

- Rapaz, nunca digas adeus. Diz sempre até já. 
- Até já avô...

Saí de sua casa, apanhei o autocarro para a minha e parei no jardim a poucos metros da minha porta e sentei-me num banco a chorar. Sabia que aquela seria a última recordação, a última vez que o viria. Lavei a cara na fonte e deixei-me a respirar o ar perfumado que vinha das plantas. Abri a porta e estava uma carta na minha mesa de cabeceira com um envelope ao meu cuidado. Abri-o com toda a calma e emoção porque sabia: era uma carta de despedida do meu avô. A carta tinha por título "Até já, numa cadeira vazia". 

Meu querido! 

Quando leres esta carta já estou de malas feitas para partir para sempre. Lembra-te sempre dos meus conselhos, se esqueceres alguns não te preocupes, com o tempo recuperarás. Não fiques triste por não me veres até porque vou estar lá em cima numa estrela a olhar-te bem do alto. Não te importes de chorar agarrado aos teus pais ou aos teus primos, eles amam-te e sabem que também me amaste sempre. Foste um neto querido, um miúdo porreiro. A cadeira que estava no meu quarto é tua, se quiseres um dia ir buscá-la a casa, mesmo que a vista não seja a melhor talvez fiques mais próximo de mim. Deixo-te uma chave mas antes deixa o pó assentar, não quero que fiques com má impressão minha. A tua avó Josefina tinha razão: sempre fui um desajeitado nas lides mas sempre tomei bem conta da cadeira. A tua avó gostava de estar sentada nela quando a desenhava e ainda bem que ficaste com um desenho meu de ti. A cadeira está vazia, o meu coração vai cheio com as horas em que me preencheste em solidão acompanhada. Fomos companheiros, desabafámos, crescemos juntos, e como cresceste... Recebe um beijo e um abraço meu e lembra-te: nunca digas adeus. 

Fechei a carta e guardei o envelope em lugar seguro. A noite começara a descer na cidade, a minha janela tinha vista para o jardim. Olhei o céu e vi uma estrela brilhante. Sorri, pisquei o olho e disse soluçando: 

- Até já grande avô!

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Ouvindo Messaien em concerto

Estou sentado na cadeira doze, na fila dez com duas pessoas a meu lado que desconheço por completo. As luzes vão ficando cada vez mais ocas, dispersas pelo tempo já acesas. Acordo com um estrondo de um sonoro violoncelo num solo. Não me reconheço sequer. Deixo-me ficar de olhos fechados, Messaien e o seu quarteto envolvem-me em pensamentos, mesmo que alguns de caril porco. Mas! Ainda agora jantei uma bela rejoada, não havia necessidade. O tinto soube-me pela vida e o charuto, ui, nem se fala. O tempo de tomar um café depois do jantar já o perdera, não me sentia o verdadeiro eu sem a cafeína correr-me nas veias. O meu vizinho do lado direito manda-me uma cotovelada, também ele adormecera à espera do artista principal e já agora, dos seus companheiros de palco. 

Não sei se por estar diferente - físicos e mentais - o som algo estranho do violoncelo eleva-me a um outro patamar. Bem! Agora sei onde estou e o que vim cá fazer. O tempo às vezes prega-me partidas e eu, de uma forma ou outra escrevo mentalmente o que ele me faz sentir. A rapariga que se sentou ao meu lado olha inesperadamente o telemóvel em busca de uma mensagem, de um ele talvez mas más notícias: a sala ficava uns metros abaixo do solo, portanto nem o melhor telefone alcançava rede. Fechou os olhos, olhei os seus lábios, depois as suas unhas, os cabelos castanhos e a carteira. Parecia-me pesada, perguntei se precisava de algo disse que não. Estava lá com vontade de ouvir música e muito pouca para falar. Faz sentido: nunca ninguém vinha a um concerto clássico para falar ou ouvir outros a falar. Perguntei o seu nome mas não me respondeu, fingiu não ouvir, distraiu-se a olhar para um sinal de saída "para cima". 

O espectáculo estava perfeitamente em condições para começar, do outro lado da sala sai um homem vestido tipo um pinguim do pólo norte. Sorrio, olho e a minha companhia da cadeira esquerda sorri também. Lanço um piropo ao que diz um obrigado. O espectáculo começa, os sons distribuem-se pela sala que se foi compondo nos minutos em que me distraí com os meus vizinhos. Assistimos ao concerto, ofereci boleia à rapariga, o outro claro que não, nem o conhecia. Agradeceu mas disse que preferia apanhar um táxi mas deixou-me um cartão com o seu telefone para tomar café. Quis fazer uma envestida momentânea enviei um sms algo atrevidote "espero-a no café três ás. Porque não falar sobre o espectáculo? Acredito que esteve sempre atenta, pelo menos não a vi olhar para outro lado que não o palco". Parei o carro em frente ao café, pouco tempo depois um táxi parou atrás de mim, não me acredito! Ela veio... Saiu do carro com um sorriso tímido no rosto e disse: 

- Só porque hoje não estou nos meus dias aceitei o convite. Estou sozinha mas precisava de desabafar...

Entrámos no café, ficámos horas a fio à conversa, ela com o telefone na mão e eu com a minha em cima da mesa a desenhar círculos. A mão direita estava no bolso do casaco, estava desconfortável em frente a ela, perguntou-me o que se passava comigo e eu respondi: 

- Deve ter sido o último rojão a fazer mal. 
- E o vinho? Foi tinto? 
- Foi. 
- Então é disso! Aconselho-o a tomar um chá que eles servem aqui.
- Obrigado pela sugestão.
- Olhe, por favor...

Olhou-me e disse: 

- Há pouco na sala perguntou-me o nome, não foi por ser mal educada, não estava em mim. Mas agora posso-lhe dizer: chamo-me Gabriela. 
- E eu, João. 

O chá bebemos até ao fim, curiosamente quando estávamos para vir embora nas colunas soaram os primeiros acordes da primeira música de Messaien. Com um ar entristecido olhei-a e disse: 

- Não sei se nos vamos voltar a encontrar, mas quando ouvir este senhor e companhia vou-me lembrar de si. 
- Eu também, pode estar certo disso.

O táxi chegou e ela partiu, Gabriela de seu nome. Eu, João parti para casa a ouvir Messaien na aparelhagem. Incendiei um charuto em casa com vista para a avenida da cidade. O táxi parou poucos metros à frente, dele saiu uma bela jovem, parecia ela. Olhou o céu e disse: 

- Não foi por acaso... não foi por acaso.