sexta-feira, 20 de julho de 2012

Ouvindo Messaien em concerto

Estou sentado na cadeira doze, na fila dez com duas pessoas a meu lado que desconheço por completo. As luzes vão ficando cada vez mais ocas, dispersas pelo tempo já acesas. Acordo com um estrondo de um sonoro violoncelo num solo. Não me reconheço sequer. Deixo-me ficar de olhos fechados, Messaien e o seu quarteto envolvem-me em pensamentos, mesmo que alguns de caril porco. Mas! Ainda agora jantei uma bela rejoada, não havia necessidade. O tinto soube-me pela vida e o charuto, ui, nem se fala. O tempo de tomar um café depois do jantar já o perdera, não me sentia o verdadeiro eu sem a cafeína correr-me nas veias. O meu vizinho do lado direito manda-me uma cotovelada, também ele adormecera à espera do artista principal e já agora, dos seus companheiros de palco. 

Não sei se por estar diferente - físicos e mentais - o som algo estranho do violoncelo eleva-me a um outro patamar. Bem! Agora sei onde estou e o que vim cá fazer. O tempo às vezes prega-me partidas e eu, de uma forma ou outra escrevo mentalmente o que ele me faz sentir. A rapariga que se sentou ao meu lado olha inesperadamente o telemóvel em busca de uma mensagem, de um ele talvez mas más notícias: a sala ficava uns metros abaixo do solo, portanto nem o melhor telefone alcançava rede. Fechou os olhos, olhei os seus lábios, depois as suas unhas, os cabelos castanhos e a carteira. Parecia-me pesada, perguntei se precisava de algo disse que não. Estava lá com vontade de ouvir música e muito pouca para falar. Faz sentido: nunca ninguém vinha a um concerto clássico para falar ou ouvir outros a falar. Perguntei o seu nome mas não me respondeu, fingiu não ouvir, distraiu-se a olhar para um sinal de saída "para cima". 

O espectáculo estava perfeitamente em condições para começar, do outro lado da sala sai um homem vestido tipo um pinguim do pólo norte. Sorrio, olho e a minha companhia da cadeira esquerda sorri também. Lanço um piropo ao que diz um obrigado. O espectáculo começa, os sons distribuem-se pela sala que se foi compondo nos minutos em que me distraí com os meus vizinhos. Assistimos ao concerto, ofereci boleia à rapariga, o outro claro que não, nem o conhecia. Agradeceu mas disse que preferia apanhar um táxi mas deixou-me um cartão com o seu telefone para tomar café. Quis fazer uma envestida momentânea enviei um sms algo atrevidote "espero-a no café três ás. Porque não falar sobre o espectáculo? Acredito que esteve sempre atenta, pelo menos não a vi olhar para outro lado que não o palco". Parei o carro em frente ao café, pouco tempo depois um táxi parou atrás de mim, não me acredito! Ela veio... Saiu do carro com um sorriso tímido no rosto e disse: 

- Só porque hoje não estou nos meus dias aceitei o convite. Estou sozinha mas precisava de desabafar...

Entrámos no café, ficámos horas a fio à conversa, ela com o telefone na mão e eu com a minha em cima da mesa a desenhar círculos. A mão direita estava no bolso do casaco, estava desconfortável em frente a ela, perguntou-me o que se passava comigo e eu respondi: 

- Deve ter sido o último rojão a fazer mal. 
- E o vinho? Foi tinto? 
- Foi. 
- Então é disso! Aconselho-o a tomar um chá que eles servem aqui.
- Obrigado pela sugestão.
- Olhe, por favor...

Olhou-me e disse: 

- Há pouco na sala perguntou-me o nome, não foi por ser mal educada, não estava em mim. Mas agora posso-lhe dizer: chamo-me Gabriela. 
- E eu, João. 

O chá bebemos até ao fim, curiosamente quando estávamos para vir embora nas colunas soaram os primeiros acordes da primeira música de Messaien. Com um ar entristecido olhei-a e disse: 

- Não sei se nos vamos voltar a encontrar, mas quando ouvir este senhor e companhia vou-me lembrar de si. 
- Eu também, pode estar certo disso.

O táxi chegou e ela partiu, Gabriela de seu nome. Eu, João parti para casa a ouvir Messaien na aparelhagem. Incendiei um charuto em casa com vista para a avenida da cidade. O táxi parou poucos metros à frente, dele saiu uma bela jovem, parecia ela. Olhou o céu e disse: 

- Não foi por acaso... não foi por acaso.


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