sábado, 13 de novembro de 2010

"Retrato frio" - parte 1 de....

A noite nem por isso vai alta, o trânsito na Baixa é quase inexistente... Está frio, uma criança brinca indiferente ao perigo da estrada ali ao lado... Sem perder a timidez e modo introspectivo que me é característico desde que me conheço como gente, se bem que hoje mesmo olhando ao espelho me é difícil reconhecer. A barba está comprida e feia, a minha cara está povoada de rugas, cada uma delas terá uma história para contar, o porquê da sua existência, se calhar, erros estúpidos que cometi, conheci pessoas incultas da vida que lutaram só para que fizessem da droga um modo de vida. Passo por São Lázaro em direcção aos Poveiros, desço Paços Manuel até dar de frente a um portão verde desbotado. Lá dentro espera-me uma sopa sem sal, uma sande de manteiga de ontem (mas que me sabe pela vida... e uma peça de fruta!

Sinto o "coração" da cidade pulsar mas o meu há muito que o deixei de sentir, se calhar já deixei de existir, sou apenas um corpo que divaga lentamente ao barulho insurdecedor dos motores e buzinas nesta cidade que eu amei, que um dia chamaram de Porto. Sinto por momentos um conforto, o conforto de um lar (algo que já não sei o que é há muito... o meu lar é a rua do Almada, a rua das Flores, a rua do Caldeireiro...). Há muito que não sei o que é uma cama feita de lavado, um bom banho antes de deitar, um tecto para viver, um cobertor para me proteger.Na mesma situação que eu está o Manel, o Quim, o Zé. Apesar de nomes diferentes todos temos a mesma história para contar: um dia tínhamos família, quando "acordámos" estávamos sozinhos na rua..., Nós somos personagens esquecidas num livro de prateleira dourada, nessa onde o príncipe encantado chega montado num cavalo branco e a bela donzela espera numa torre alta... tão alta como a dos Clérigos que agora vislumbro. Hoje é sexta-feira ou ainda é quinta? Passo nas ruas da confusão estendendo a mão à espera de uma moeda para comprar algo para lá de pão. Não é para álcool nem para droga, não sou delinquente, sou sim vítima inocente. Todos me olham com desdém, todos me dizem para me matar, para desaparecer... Faria isso de bom grado, deixava de sofrer. Procuro um abrigo numa noite que se adivinha de muito frio. Encostei-me a uma porta fechei os olhos e imaginei mais uma vez...o conforto!

O meu corpo sente-se cansado, imaginem o meu coração. Daria tudo o que tenho, o pouco que tenho... para voltar a ter aquele espaço que um dia foi nosso, que tem 3 letras e se chama LAR. A noite passa, passa devagar, o meu coração começa a fraquejar. Não sinto medo da tal barreira passar porque sei quando os olhos em definitivo fechar haverá alguém do outro lado e a mão vai esticar para me ajudar. Eu sou só mais um entre muitos sem abrigo neste Porto sem sentido. Divago, divaguei, hoje sei... Fui, sou e serei o homem que um dia acordou e se casou com uma mulher chamada RUA. Um casamento que durou tempo demais. Fecho os olhos e penso: vou partir mas antes vou-me de ti despedir... Amanhã dificilmente aparecerá o meu nome no jornal, não tenho identidade... Essa? Perdi-a um dia destes, há muitos anos na minha cidade!




Francisco Azevedo

"Retrato frio"

8 de Setembro 2010

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