sábado, 21 de julho de 2012

Cadeira na janela

Costumava ver o meu avô sentado naquela cadeira junto à janela do quarto. A vista não era propriamente deslumbrante, vivia na cidade, no centro nevrálgico, carros passavam quase a um ritmo constante de dez por minuto. O meu avô contara-os no tempo em que já pouco ou nada fazia. Deitado na cama sorria para mim quando o visitava. Escrevia nos tempos em que a dor pouco o atormentava. Eu não vivia na mesma cidade, a avó não cheguei a conhecer, partiu pouco tempo depois de eu nascer. Mas o que vivera com o meu avô foi mais do que suficiente para que a cadeira vazia me fizesse confusão. Visitara-o nessa semana todos os dias, ficámos horas à conversa, tinha sempre a sua piada ou conselho para me dar. Nunca percebi o que ele quis fazer, pôr termo a tudo o que era em mim: uma vida. Ele decidiu a forma mais digna de partir, para junto do seu amor, a sua Josefina de sempre. Um dia cheguei a casa e ele disse-me: 

- Hoje, vou-te deixar sentar nessa cadeira. Quero fazer um desenho teu e quero que o guardes para sempre. Podes guardar como se fosse um segredo só nosso. Posso-te pedir antes uma coisa? 
- Sim avô, diz. 
- Nunca sejas incorrecto mesmo que essas pessoas mereçam. Terás a tua recompensa quando eles estiverem no chão, vais poder olhá-los de cima. 
- Não percebo o que me queres dizer, mas vou fazer o que me estás a pedir. 
- Sim, com o tempo vais perceber estas palavras. Agora deixa-te ficar aí a olhar pela janela. 

Olhei, e por momentos consegui perceber a vontade que o meu avô tinha de ficar ali sentado a olhar o mundo da cidade lá fora. Via pessoas caminharem para lojas, cafés, os mais pequenos jogavam à bola no jardim em frente. Guardei o desenho que o avô me fizera e disse-lhe adeus. Corrigiu-me, disse-me: 

- Rapaz, nunca digas adeus. Diz sempre até já. 
- Até já avô...

Saí de sua casa, apanhei o autocarro para a minha e parei no jardim a poucos metros da minha porta e sentei-me num banco a chorar. Sabia que aquela seria a última recordação, a última vez que o viria. Lavei a cara na fonte e deixei-me a respirar o ar perfumado que vinha das plantas. Abri a porta e estava uma carta na minha mesa de cabeceira com um envelope ao meu cuidado. Abri-o com toda a calma e emoção porque sabia: era uma carta de despedida do meu avô. A carta tinha por título "Até já, numa cadeira vazia". 

Meu querido! 

Quando leres esta carta já estou de malas feitas para partir para sempre. Lembra-te sempre dos meus conselhos, se esqueceres alguns não te preocupes, com o tempo recuperarás. Não fiques triste por não me veres até porque vou estar lá em cima numa estrela a olhar-te bem do alto. Não te importes de chorar agarrado aos teus pais ou aos teus primos, eles amam-te e sabem que também me amaste sempre. Foste um neto querido, um miúdo porreiro. A cadeira que estava no meu quarto é tua, se quiseres um dia ir buscá-la a casa, mesmo que a vista não seja a melhor talvez fiques mais próximo de mim. Deixo-te uma chave mas antes deixa o pó assentar, não quero que fiques com má impressão minha. A tua avó Josefina tinha razão: sempre fui um desajeitado nas lides mas sempre tomei bem conta da cadeira. A tua avó gostava de estar sentada nela quando a desenhava e ainda bem que ficaste com um desenho meu de ti. A cadeira está vazia, o meu coração vai cheio com as horas em que me preencheste em solidão acompanhada. Fomos companheiros, desabafámos, crescemos juntos, e como cresceste... Recebe um beijo e um abraço meu e lembra-te: nunca digas adeus. 

Fechei a carta e guardei o envelope em lugar seguro. A noite começara a descer na cidade, a minha janela tinha vista para o jardim. Olhei o céu e vi uma estrela brilhante. Sorri, pisquei o olho e disse soluçando: 

- Até já grande avô!

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Ouvindo Messaien em concerto

Estou sentado na cadeira doze, na fila dez com duas pessoas a meu lado que desconheço por completo. As luzes vão ficando cada vez mais ocas, dispersas pelo tempo já acesas. Acordo com um estrondo de um sonoro violoncelo num solo. Não me reconheço sequer. Deixo-me ficar de olhos fechados, Messaien e o seu quarteto envolvem-me em pensamentos, mesmo que alguns de caril porco. Mas! Ainda agora jantei uma bela rejoada, não havia necessidade. O tinto soube-me pela vida e o charuto, ui, nem se fala. O tempo de tomar um café depois do jantar já o perdera, não me sentia o verdadeiro eu sem a cafeína correr-me nas veias. O meu vizinho do lado direito manda-me uma cotovelada, também ele adormecera à espera do artista principal e já agora, dos seus companheiros de palco. 

Não sei se por estar diferente - físicos e mentais - o som algo estranho do violoncelo eleva-me a um outro patamar. Bem! Agora sei onde estou e o que vim cá fazer. O tempo às vezes prega-me partidas e eu, de uma forma ou outra escrevo mentalmente o que ele me faz sentir. A rapariga que se sentou ao meu lado olha inesperadamente o telemóvel em busca de uma mensagem, de um ele talvez mas más notícias: a sala ficava uns metros abaixo do solo, portanto nem o melhor telefone alcançava rede. Fechou os olhos, olhei os seus lábios, depois as suas unhas, os cabelos castanhos e a carteira. Parecia-me pesada, perguntei se precisava de algo disse que não. Estava lá com vontade de ouvir música e muito pouca para falar. Faz sentido: nunca ninguém vinha a um concerto clássico para falar ou ouvir outros a falar. Perguntei o seu nome mas não me respondeu, fingiu não ouvir, distraiu-se a olhar para um sinal de saída "para cima". 

O espectáculo estava perfeitamente em condições para começar, do outro lado da sala sai um homem vestido tipo um pinguim do pólo norte. Sorrio, olho e a minha companhia da cadeira esquerda sorri também. Lanço um piropo ao que diz um obrigado. O espectáculo começa, os sons distribuem-se pela sala que se foi compondo nos minutos em que me distraí com os meus vizinhos. Assistimos ao concerto, ofereci boleia à rapariga, o outro claro que não, nem o conhecia. Agradeceu mas disse que preferia apanhar um táxi mas deixou-me um cartão com o seu telefone para tomar café. Quis fazer uma envestida momentânea enviei um sms algo atrevidote "espero-a no café três ás. Porque não falar sobre o espectáculo? Acredito que esteve sempre atenta, pelo menos não a vi olhar para outro lado que não o palco". Parei o carro em frente ao café, pouco tempo depois um táxi parou atrás de mim, não me acredito! Ela veio... Saiu do carro com um sorriso tímido no rosto e disse: 

- Só porque hoje não estou nos meus dias aceitei o convite. Estou sozinha mas precisava de desabafar...

Entrámos no café, ficámos horas a fio à conversa, ela com o telefone na mão e eu com a minha em cima da mesa a desenhar círculos. A mão direita estava no bolso do casaco, estava desconfortável em frente a ela, perguntou-me o que se passava comigo e eu respondi: 

- Deve ter sido o último rojão a fazer mal. 
- E o vinho? Foi tinto? 
- Foi. 
- Então é disso! Aconselho-o a tomar um chá que eles servem aqui.
- Obrigado pela sugestão.
- Olhe, por favor...

Olhou-me e disse: 

- Há pouco na sala perguntou-me o nome, não foi por ser mal educada, não estava em mim. Mas agora posso-lhe dizer: chamo-me Gabriela. 
- E eu, João. 

O chá bebemos até ao fim, curiosamente quando estávamos para vir embora nas colunas soaram os primeiros acordes da primeira música de Messaien. Com um ar entristecido olhei-a e disse: 

- Não sei se nos vamos voltar a encontrar, mas quando ouvir este senhor e companhia vou-me lembrar de si. 
- Eu também, pode estar certo disso.

O táxi chegou e ela partiu, Gabriela de seu nome. Eu, João parti para casa a ouvir Messaien na aparelhagem. Incendiei um charuto em casa com vista para a avenida da cidade. O táxi parou poucos metros à frente, dele saiu uma bela jovem, parecia ela. Olhou o céu e disse: 

- Não foi por acaso... não foi por acaso.


terça-feira, 26 de junho de 2012

Penas no Brasil descem....

O Estado Brasileiro mostra-se extremamente preocupado com o número de cidadãos da cidade maravilhosa - e não só - de permanecerem anos a ver o sol aos quadradinhos, para que isso não aconteça decidiu fazer a seguinte proposta aos reclusos: por cada livro que lerem vêm reduzida a pena em 4 dias. Ora, a ser verdade, pessoas como o Duarte Lima ou o famoso homem que matou os quatro portugueses e os enterrou debaixo do cimento numa praia a sul de Fortaleza vão fazer vários pedidos nos próximos tempos. Duarte Lima goza de uma liberdade condicional em Portugal e não está nos planos dele regressar ao Brasil. A lei é tão boa que o arguido pode recusar cumprir a pena se permanecer no seu país de origem. 

Mas voltando à notícia que me trouxe aqui: a redução das penas - os responsáveis das prisões brasileiras querem apenas que os presos saiam no final das penas com uma visão mais alargada do mundo. Dizem que ler faz viajar e é isso que eles querem enquanto permanecem anos e anos nas celas e corredores frios. 

Podemos trazer o mesmo para Portugal? Pessoas como Carlos Silvino também agradeceriam só que não está previsto haver na prisão livros sobre pedofilia ou histórias de encantar jovens adultos. 

É caso para dizer: quantas mais palavras por dia conseguires ler mais cedo vens embora. Com uma vantagem: vens um ex-recluso mas muito culto! 


Francisco Milheiro 
Junho 2012 

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Lugares comuns

Soam banais todas e quaisquer palavras que escreve agora, desta vez em linhas tortas. Serão elas tortas desde nascença ou a minha ínfima vontade de baixar a cabeça e deitá-la sobre o ombro me fazem crer que o mundo está ao contrário? Sinto-me cansado de escrever sobre lugares comuns, sobre os afectos que afectam cada vez mais o mundo, sinto a vontade de subir no lugar mais alto do mundo mas sentir nas pernas a dificuldade, chegar lá cima tirar todas as fotografias que a máquina me deixasse. 

Sinto vontade de fugir de lugares comuns, que o meu cão volte a ter a idade bebé, que o possa abraçar, lhe dar beijos e amassos na hora de dormir. Sento-me agora, ergo a cabeça de forma decidida com vontade de a manter assim - VIVA! Hoje sinto falta de lugares incomuns, jardins de inverno em que o barulho dos pássaros e o virar das folhas de um bom livro me fazem sonhar. Sim, hoje quero sonhar com lugares incomuns e já agora, viajar por eles. Não quero que o tempo se esgote em mim mas também não quero esgotar o tempo e fazer nele coisas comuns, dizer palavras banais e escrever de forma aparvalhadamente apaixonada. 

Quero escrever isso sim, sobre lugares incomuns, pelo menos para mim. Não quero deixar que as pequenas pedras me derrubem, nem sequer tenciono pedir desculpa por aquilo que não fiz. Quero subir no lugar mais alto do mundo e soltar um sorriso feliz. Quero ser o que não fui, quero ter o que não tive. Quero que o mundo se torne mais bonito, que cada esquina tenha a sua sombra e que não tenha medo do que está do outro lado. Quero poder fotografar à vontade os lugares comuns, talvez consiga fazer deles aquilo que quero fazer para mim. Construir à vontade um lugar onde me possa perder no jardim, escolher um bom livro, escrever palavras com sentido, ver o meu cão correr livremente. 

Hoje sinto falta de tudo, até de ver gente. Hoje talvez não seja aquele quem queriam que fosse, talvez as palavras me fujam para que corra atrás e seja feliz... num lugar comum: o mundo! Se foi nele que nasci e por ele percorri espero que me dê um lugar onde possa sentir o que sou, independentemente dos lugares comuns em redor, farei dele um lugar especial


Desabafos diários,
Francisco Milheiro 
Junho 2012

segunda-feira, 18 de junho de 2012

O estranho acordar de uma manhã

O despertador toca, tantas vezes sem avisar a sua natural investida matinal. Nessa manhã Elisa, de seu nome porque tal assim a quis chamar acordou estremunhada, da janela do seu quarto pouco via mas o quase nada que via era o suficiente para lhe causar um sorriso nos lábios e um brilho aveludado nos seus olhos castanhos. As horas vão passando e o sono regressa e Elisa volta ao seu pequeno mundo. No tecto, preso por ganchos de montanhismo está um balouço em forma de meia lua, Elisa permanece impávida e serena contando aproximadamente o seu balançar, senta-se nele e observa aquela luz forte no céu. Nessa noite Elisa lembra-se bem, era dia de uma nova. Colocou na aparelhagem um som de tal forma bonito que a fez sorrir e respirar devagar. Agora pouco ou nada lhe interessava, a não ser aquela luz e a canção que tocava. A sua forma de estar no mundo permitia-lhe duvidar que existissem más pessoas, maus momentos ou surpresas desagradáveis.

Elisa lembrara-se nesse momento da sua avó, partira na noite anterior mas tinha-lhe deixado um recado entre-linhas na última vez que estiveram juntas:

- Nunca duvides do amor que há na família. Não procures no tempo e no espaço perguntas às quais não saberia eu responder. Não duvides que no mundo haverá alguém que ama esse teu jeito desengonçado e ao teu nariz que tu dizes ser feio. Lembra-te de mim cada vez que olhares a lua e não te preocupes com nada, estarei a olhar por ti lá onde estiver...

Nessa noite, Elisa adormeceu com o pêndulo do balouço no tecto do seu quarto, a lua de feições enormes embalaram-na para um sono tranquilo e lá, bem ao lado da lua uma estrela brilhava. Recorreu ao livro de astronomia e ao mapa do céu que tinha na parede onde se encontrava a cama e tentou descobrir qual era. Reparara numa marcação a lápis azul...

- Ah! Já sei qual o teu nome...

Foi acordada pelos pais que tinham uma notícia para lhe dar mas Elisa, com a sua perspicácia apesar de tenra idade disse:

- Não precisam de me dizer nada. Já sei quem está ao lado da lua e a olhar para mim...

A mãe pouco ou nada soube dizer, o pai saiu do quarto, nele Elisa permaneceu deitada no balouço em forma de meia-lua à espera que a noite chegasse e voltasse a ver a avó, agora de forma diferente mas com a garantia que seria para sempre. Da gaveta tirou um velho passpartout e nele uma foto com quase quinze anos, uma bebé ao colo de uma senhora distinta. A mãe, ao ver aquela fotografia emocionou-se ainda mais porque percebeu a ligação especial entre ambas.

O dia acordou cinzento mas o céu ficou mais azul da parte da tarde. Elisa levantara-se do balouço, sorriu para o infinito a pensar "Espero que tenhas chegado bem e já sei que vais estar bem para sempre...". Deu um beijo na fotografia e adormeceu, acordou com o brilhar forte da lua naquele quarto onde pouco ou nada conseguia ver, mas aquela bola branca arredondada era o que precisava para acordar feliz todos os dias que se seguiriam até voltar a encontrar.... a mulher agora em formato de uma estrela...


In "Reflexus"
Francisco Milheiro
Junho 2012

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Cheirinho do novo livro

Capítulo I

 Apagou a luz do quarto e ficou com os olhos postos no tecto, a olhar o branco quase imaculado, do lado esquerdo a mesinha de cabeceira com o relógio oferecido pelo seu pai aquando da partida para Northfolk a algumas horas de Londres. Esqueceu por momentos o motivo que o levara a fazer a viagem e pouco ou nada sabia sobre o futuro, não sabia se voltaria à capital onde os meses de inverno se prolongam por mais uns meses que no resto do mundo. Lá fora, o céu relativamente estrelado fê-lo voltar à velha infância, no tempo em que percorria os campos despreocupados com Patrice, amiga do peito, primeira namorada a quem dera o primeiro beijo. Fizeram juras de amor hoje incompreendidas e causadoras de sorrisos parvos com os amigos aviadores da RAF... Permaneceu assim, acordado, ainda vestido com a camisa acastanhada, lá fora os cães ladravam quando ouviam sons esquisitos. Os barulhos diurnos não o incomodavam ainda que adormecesse sobressaltado com o que passara... Pegou numa pena e num papel e começou a escrever para casa, em busca de conforto que não encontrara naquele quarto grande. Na mesa estava uma fotografia dele com o avô. Suspirou e disse baixinho:

 - Fazes-me tanta falta...

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Uma varanda para o rio

- Desculpa, mas agora não percebi...! - O quê? - O que me disseste. Primeiro dizes para não te esquecer e assim de um momento para o outro perguntas o nome e não sabes quem sou. - Mas quem te disse isso? Não fui eu... - Desculpa mas foste. - O que se passa comigo? - Enquanto soluçavas eu amparei-te num abraço, estavas assustado e eu comecei a ficar por te ver assim. Se calhar é melhor recuar um pouco no tempo e vermos como tudo ficou diferente. - O pai está doente, não se dá conta? - Eu estou óptimo! Sinto-me dez anos mais novo. Mas olha, o que faz aquela flor ali no chão? - Paizinho, vamo-nos acalmar. É um vaso. - O que é isso? - É para deixar as plantas lá. Vamos fazer um teste, quer? - Um teste? De quê? - Vou-lhe fazer umas perguntas, assim vai-me respondendo com sim, não ou talvez. - Vou tentar... - Sabe quem sou? - Sei. - Está bom tempo? - O rio está lindo... - Não pai! Não foi isso que lhe perguntei. Diga-me só sim, não ou talvez... Está bom tempo? Desataste num pranto, falando mal sobre o teu pai, insultaste a tua mãe, minha avó que sempre amaste e dizias que o teu cão era estúpido, que não sabia voltar para casa. - Tail! Onde estás? - Pai... já não tens esse cão, foi enterrado há quatro anos depois de dois anos a sofrer... - Preciso de o ver! Onde está? - Então, não te lembras? Está ali naquela árvore, perto do rio onde ele sempre gostou de estar. Ainda me lembro que o ia buscar à garagem e o trazia para o meu quarto. Ficavas chateado comigo? - Não, mas a tua mãe sim. - Como te lembras de tanta coisa de há muitos anos e de coisas simples não? Fizeste um silêncio perturbador, querias sair dali o mais depressa possível. Olhaste para mim com vontade de me pedir ajuda e ao mesmo tempo desculpa mas nada disseste. O teu ar assustado deu-me vontade de chorar, de pedir ajuda, mas estamos longe de tudo e de todos. Desde que a mãe morreu e tu quiseste sair da casa da cidade mudaste para o campo e permaneceste, ainda que com poucas condições. - Pai, o que é feito de ti? - Estou com frio... - Vá! Vamos para dentro? - E se chega o Tail? - Não te preocupes... eu vejo-o chegar e abro a porta, ainda tenho o meu quarto lá em cima arranjado. - Queres ficar cá? Podia preparar algo para nós... - Sim, fico. Quero um chá. Vou ligar a lareira. - Eu vou à cozinha buscar o que me pediste. Acendi a lareira e tu, voltaste com uma fatia dura de pão. - Está bom assim? - Sim Pai, obrigado! Era mesmo isto que eu queria. O silêncio que fizeste foi perturbador, eu não dissera nada de errado. Olhaste mais uma vez para mim com um ar agoniado, triste com o que se passava à tua volta. - Queres que te ajude a vestir o pijama? - Não. Eu ainda sei arranjar-me sozinho. - Ainda assim eu vou contigo. Já viste o tempo que passou desde que estivemos todos juntos nesta casa? - Ainda o teu cão era vivo e eu namorava a tua mãe. Há quanto tempo é que...? - Fez ontem dois anos. Mas não vamos ficar a falar de coisas tristes. Vamos falar sobre ti. - Que queres que diga? Pouco ou nada sei... - Vá Velhote, faz um esforço... - Para que serve isto que está ali no chão? - Onde? No alpendre? - São flores? - Sim, são! - E estão no chão? - Caíram com o vento. - Vou lá pô-las de novo em cima do parapeito. A tua mãe ainda fica chateada comigo por vê-las ali. - Pai, a mãe já não volta. - Então e eu? - Estás aqui comigo, ainda preciso muito de ti... - Uiui! - Que foi isso? - Nada! Estou a chamar o Tail! - Vá... o Tail está com a mãe. - Não o posso ver? - Agora não, talvez amanhã de manhã te leve a passear junto ao rio... - Que faz ele? - Dorme descansado... - Gostava tanto de fazer o mesmo. Achas que deva regar a planta? - Não te preocupes, eu faço isso. - Vou-me deitar, antes que a tua mãe chegue... - Fazes bem! Eu trato de tudo. - Obrigado Filho. Obrigado... Saíste da sala em direcção ao quarto, deitaste-te com a roupa que tinhas colada ao corpo. Olhaste pela janela e viste a lua a brilhar... O rio estava calmo, passei pelo teu quarto e falavas sozinho: - Maria, o nosso filho pensa que estou maluco. Mas tu sabes que não é verdade. Porque não me levas para a tua beira? Estou certo que o Tail tem saudades minhas, aquele maroto. Lembras-te quando subia as escadas para dormir no quarto do nosso filho? Fechei-me no quarto e chorei, como uma criança... Não reconheci o meu velho pai, já não é ele, é apenas um corpo de alguém que já foi... Mas eu não deixarei de ser... Francisco Milheiro "Recordações de uma aldeia" Maio 2012

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Folha em branco, obrigado por tanto

A noite vai chegando e entrega-me sem pensar o seu sossego e silêncio. Os minutos vão passando e eu fico-me pela escrivaninha, quem sabe do lado de lá da noite me traga alguma tranquilidade e inspiração para divagar na folha que há muito está branca. O incenso faz-me libertar ainda mais o meu espírito que tende a desprender-se do meu corpo para me deixar escrever ou pensar alto, no papel. Abro a janela e sopra um ligeiro vento da serra, do outro lado da rua soam acordes de uma melodia que não consigo reconhecer. Deixo-me ficar a ouvir até o som se esvoaçar e as notas sonantes se perderem do outro lado da rua, bem perto do meu quarto. Os minutos vão passando e a folha vai mostrando algumas palavras que no momento saem mas por muito que queira não as consigo entender. Até há bem pouco tempo o silêncio e as histórias tristes faziam parte de mim, o quotidiano nada mais era que o realizar de tarefas árduas e desinteressantes mas tudo mudou num segundo. Hoje, quando acordo sinto a felicidade inundar-me o espírito, e é com ele que parto para o mundo com vontade de o conquistar. Não é que tenha pertenções de mudar o mundo na sua totalidade, mas há muito que quis fazer parte da sua realidade. O mundo esteve fechado para mim mas sinto finalmente que abriu uma janela, bem lá no cimo, no sótão. Guardei todas as minhas forças acumuladas ao longo de um ano e tal e sorri quando a alcancei. Era tão importante partilhar este momento que não sei se o fiz da melhor forma mas fica a certeza que o fiz de coração aberto. O tempo vai passando e a noite traz-me conselhos que me fazem acreditar que estou no caminho certo. Sei que a viagem ainda agora começou mas as pegadas que aparecem desenhadas a meu lado fazem-me perceber que estou bem acompanhado. O som das melodias fazem-me entrar noutra dimensão e perceber um pouco mais do meu coração. Há dias em que a felicidade não é mais do que um vocabulário num dicionário estudado por todos mas apenas uns conseguem perceber o seu significado. Vou desfolhando este dicionário que agora possuo e descubro palavras que até há bem pouco tempo não existiam ou não eram visíveis a olho nu: amizade, abraço, beijo, bondade, carinho, cumplicidade, interacção, verdade... São tantas as palavras que me aparecem no dicionário, vou estudar um pouco melhor e perceber se elas entraram na minha vida ou fui apenas eu o estafeta que entregou tudo isso e algo mais. As horas vão passando e eu, acumulo a experiência que um dia achei inatingível a alguém como eu, limitava-me a aceitar tudo o que os outros queriam para mim e não respondia porque achava ser um acto de má educação. Até há bem pouco tempo a realidade não era mais do que o estar acordado e vivo, mas vivo para quê? Para quem? Alguém importante um dia disse-me: Por muito que procures, a felicidade vai- se esconder até ao dia em que estiveres preparado para lhe dar o devido valor. Não procures a felicidade, vive! Essa tal de felicidade encontrei em amigos que fiz, em amigos que deixaram a sua marca em mim... ensinaram-me que a felicidade está num simples olhar e num sincero Obrigado. Muitos desses amigos estão aqui, outros infelizmente partiram. A caneta está a chegar ao fim, mas ainda tenho força para deixar escrito no céu de cada um de vós: - Obrigado por tanto! Obrigado do fundo do coração! Francisco Milheiro (Retirado dos "escombros" do disco externo)

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Carta ao entardecer

Meu Amor, Sei que já me esqueceste, mas ainda assim gostava de te relembrar o quanto foste importante para mim. Meu Amor, eu sei que o tempo não perdoa, as horas passam e não voltam sequer atrás, eu sei que o teu interesse por mim esvaneceu, esmureceu como aquela noite que surgiu com tempestades sem aviso prévio. O meu amor foi crescendo mas o teu coração não era mais do que um lugar reservado e ocupado por alguém que não eu. Nesta praia vou caminhando e chorando as lágrimas que teimei, por ser homem, em não chorar à tua frente. As vezes em que precisei de te pedir desculpa não tive coragem, as vezes que errei não foram suficientes para aprender a lição. O tempo foi passando, e o meu lugar foi ficando… guardado noutro lugar que não o teu coração. O sol está-se a pôr na praia em que passeámos diversas vezes, em que nos deixámos ficar para lá da hora marcada, momentos esses sempre interrompidos pelo barulho das ondas nas rochas que ficavam firmes aos nossos pés. O cheiro do teu cabelo ainda o reconheço, o teu rosto peço… para tocar e nunca mais o largar. Falámos vezes sem conta sobre a formula mágica de guardarmos os momentos e de nos recriarmos para sempre mas o tempo, mais uma vez, se encarregou de fazer o contrário. Hoje, sei que não me reconheces, já nem sequer sabes o meu número, sou apenas mais um da tua lista telefónica, que sei, ainda está ao lado do piano da tua sala. Sabes, meu Amor? No outro dia sonhei contigo. Sonhei com o tempo em que éramos um todo, o ar de jovens apaixonados estava estampado nos nossos rostos, a cada manhã olhava o espelho e nele via reflectido o teu. Era sinal de amor verdadeiro, de amor sem interesses, apenas no bem que fazíamos mutuamente. As horas vão passando, não voltam a repetir-se aquelas saídas nocturnas só para te dar um beijo de boa noite, que acabavam sempre com a mesma frase: - É por estas maluquices que te amo cada vez mais! Foi por ti que deixei de dormir para poder escrever meu Amor, esta e outras cartas que não chegaste a ler. Sei que agora estás sentada na tua cadeira, feita poltrona com os pés assentes num pequeno banco de apoio e durante o dia estás virada para o mar… O tal em que mergulhavas comigo, dizendo: - Se esta onda for a última que o mar tenha força para criar quero que ela nos atinja com a sua força e dê uma nova alma para este amor não acabar. Foram tantas as vezes em que olhavas para mim, tu no mar e eu sentado na areia, e com um sorriso dizias: - Meu amor, a água está óptima. Deixa-me partilhar este momento contigo! Nunca resisti a uma chamada tua, ficava sempre nervoso quando entrava mas sabia que estaria nos teus braços para nunca mais te largar… Fizeste-me, sem culpa, acreditar num amor verdadeiro, único e real, aqueles que só acontecem nos filmes, mas a nossa vida era, infelizmente vida! Estou aqui a escrever à beira-mar e estou a imaginar-te ler esta carta, com um leve sorriso no rosto de menina (que ainda sei que preservas) e uma furtiva lágrima porque conseguiste por momentos, relembrares quem foste. Eu ainda sei quem sou, mas tu infelizmente, já não te reconheces nem ao espelho. Os anos foram passando e a natureza humana (cruel) fizeram-te refém num corpo de mulher de idade. Se este for o meu último dia na terra, quero que saibas, vou feliz, porque consegui por momentos recordar o passado em que fui feliz e a pessoa que sempre quis… esteve comigo, naquela praia, naquelas rochas, naquele oceano, naquela vida. Hoje talvez te escreva para dizer Adeus ou até breve, sei que nos vamos voltar a ver e que nesse dia vais sorrir porque me vais reconhecer. Vais voltar a sentar-te ao piano, passearás comigo numa outra praia, mas com o mesmo sorriso e a mesma vontade: Estar para viver… Recordar para não mais esquecer! Francisco Milheiro 12 de Junho 2011

domingo, 6 de maio de 2012

Um café com tempo para o amor

O São Pedro parecia determinado a adiar mais um café, entre mim e a mulher com quem tenho conversado ultimamente. Desculpou-se inicialmente porque não tinha o cabelo arranjado, que se sentia horrível ao ver o seu cabelo reflectido no espelho do quarto. Durante dias, depois meses fomos conversando sobre tudo o que nos vinha à cabeça, depois sobre o que queríamos ser em adultos, os anos passaram e eu concretizei o sonho de menino, dar a volta ao mundo em oitenta dias... Ela fora como passageira, eu um simples comissário de bordo. Aproximei-me com um tímido sorriso e disse: - Bem-vinda! Estarei disponível para o que precisar. Sentira o peso de ter de ser agradável, agradeceu e colocou uns óculos tipo máscara. Todas as vezes que passava por ela tentava desviar o olhar... mas era impossível. Ela era linda, e ali, a muitos mil metros de altitude senti-me apaixonado. A viagem terminou em Bali, desde que aterrámos, nunca mais a vi. Lembro-me que lhe deixara o meu email, disse com um sorriso: - Obrigado, entrarei em contacto sempre que precisar de algo. Saiu do avião, aquela dança de ancas deixou-me colado ao chão, até que ouvi: - Está pronto para fazer o biefring? Percorri o avião de forma decidida, à vinda deixei-me ficar sentado no lugar dela. Uns seis meses mais tarde recebi um convite para conversar na internet, aceitei de imediato, reconhecera logo o nome. Após quase uma hora de conversa parva, mas de certa forma interessante convidei-a para um café na cidade onde nos conhecemos. Inicialmente declinou o convite, depois disse SIM em caps. O tempo passou e finalmente cruzou-nos. Estava na mesa do canto com o meu bloco de notas azul de capa dura e os meus olhos inexplicavelmente ergueram-se para a ver chegar. Chegou num passo normal de fim-de-semana, com os seus longos cabelos soltos, os óculos apoiados na sua cabeça arredondada. Trazia uma saia lisa e um pólo muito feminino. Da forma mais natural possível levantei-me, dei um passo à frente e disse um expressivo olá. Sorriu para mim e disse: - Olá! O que queres tomar? - O mesmo que tu. - Muito bem! Olhe por favor, são dois cafés, um com casca de limão. Respirou profundamente e perguntou: - E então, que tens feito? - O mesmo de sempre, viajar por esse mundo fora. - E esse coração? Voa também ou está enterrado nalgum lugar? - Sinceramente? A última vez que o vi estava em Bali. - É pena. Não queres lá voltar para o trazer? - Porque não? Lembro-me muito bem o que disseste: - Mesmo que esse amor tenha nascido longe, quase do outro lado do mundo, não quer dizer que não o possas resgatar num segundo. Ainda bem que fiz aquela volta ao mundo, deu para perceber que ainda há pessoas que nos fazem voltar ao lugar de sempre, sentir o cheiro do mesmo mar, ouvir os mesmos sons do mar e ter o mundo aos pés num curto espaço de tempo. Francisco Milheiro 5.12.2011

sábado, 5 de maio de 2012

Em viagem... por terras douradas

Decidi dar-lhe o nome de Maria, pelo que me lembre não conheço nenhuma mulher só chamada Maria, então estou à vontade para o fazer. A Maria era mais uma mulher espalhada no mundo, de si pouco ou nada se sabia, ninguém sabia o seu nome real, a sua idade verdadeira, muitos falavam que sua mãe morreu no parto, ao mundo entregue a si própria ficou Maria. Não tem conotações verdadeiramente religiosas ou socio-políticas, pareceu-me apenas bem chamar-lhe assim. Todos os anos, pelo Natal Maria ficava melancólica, triste a pensar na mãe, curiosamente ou não, foi pela altura de Natal que o seu coração se abriu para um homem, vá, um menino na altura, de seu nome Frederico. Maria estudava em Coimbra na área que sempre gostara, pelo menos nisso teve o apoio de seu pai, Eduardo. Entrara em Letras pouco tempo depois do 25 de Abril de 74, nessa altura a política passava-lhe ao lado, e ainda hoje pouco ou nada sabia sobre a filosofia dos partidos, a ela interessava-lhe saber quem era Camões, ler sobre Pessoa, devorar Florbela e viajar pelas paragens de Kafka. Refugiou-se em Praga o tempo necessário para escrever o seu primeiro romance "A minha história igual às outras", idealizara uma mulher bem diferente mas com um percurso de vida relativamente idêntico, cantou canções de poetas que gostava, tocou na rua como uma vagabunda e interessou-se ainda mais pela vida na República Checa. Maria regressara a Portugal uns meses depois de começar o boom da economia em Portugal, depois da Troika ter passado por Lisboa. Na rua passeava despreocupada, encontrava-se num mundo só seu, era engraçado passar nas livrarias e ver as pessoas pegarem nos seus livros e pagaram uma quantia simbólica, duzentos escudos. O primeiro contracto com a editora "Livrinhos" foi recheado de colapsos, não só por parte dela por perceber pouco do assunto mas também por eles porque era a primeira mulher em quem apostara. Maria, cansada de erros decide pôr termo à vida de escritora como profissional das palavras escritas e iniciara-se na vida do ensino, acabou por ser destacada em mil novecentos e oitenta e dois para Mirandela, no distrito de Vila Real. Em Lisboa deixou a sua casa velha, que pertencera à sua mãe, deixou o pai bem instalado num lar e prometera-lhe fazer visitas regulares. Pouco tempo depois de estar sedeada em Mirandela recebeu uma chamada do director do lar onde estava a viver o seu pai, tivera uma síncope e não resistira apesar dos esforços envidados pelos médicos e enfermeiros presentes. Maria entrou num estado depressivo e voltou para Lisboa, apesar do seu estado não conseguiu derramar uma única lágrima, tinha a noção que já chorara tudo na viagem de regresso, fizera de carro com uma chuva aparentemente tropical. Falou com a escola que a contratara e pediu uma licença sem vencimento. Afirmaram que estavam à inteira disposição para a ajudar no que fosse preciso. Não precisava de nada, afirmara com uma voz ainda embargada, decidiu passar pela casa de Lisboa e ficou por largos minutos a contemplar as paredes que tanto lhe diziam, deitou-se na cama feita dos pais e partiu para Praga. O avião aterrou poucos minutos depois das oito horas. Regressou à mesma praça onde sorriu com Frederico, reservou o mesmo quarto da pensão onde estivera e leu Kafka horas a fio. Deixou-se adormecer com o livro na barriga e dormiu um sono bom, acordara com Praga com sol. Viu ao longe o Vtlava e ouviu ópera. A vida encarregar-se-ia de escrever uma nova página e ela pronta para a começar a ler.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Coisas que sei ou julgo saber

Sei com certeza, De vez em quando Soltar uma gargalhada Sonho contudo por vezes Numa ou outra coisa aparvalhada Escrevo sobre o mar, O amor, o desejo Escrevo sobre o Porto, Lisboa E Alentejo Leio poesia que me atrai Canto canções de músicos conceituados Falo sobre paixões, amores E casos mal amanhados Escrevo sobre história Apesar de ela pouco saber Todos os casos importantes Aconteceram antes de nascer Procuro saber o que não sei Com verdade que busco em mim Procuro sempre uma oportunidade De fazer ou plantar num jardim Sinto as folhas das árvores Caindo em pleno outono Sei do frio que faz no mundo Mas isso não me tira o sono Vou voando em ilusões Nas poesias que me saem sem saber Aquilo que eu quero Por vezes, dizer Tenho sorte na amizade Tive até um pouco no amor Magoem-me com a verdade Que posso bem com essa dor Procuro prazer Em coisas simples da vida Vou escrevendo sobre o amor Vivido numa noite de Tavira Escrevo sobre a calçada de Lisboa E dos prédios da Ribeira Divago sobre Goa E sobre frases de Videira Francisco Milheiro Maio 2012

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Miles Davis numa rua da Baixa

12/03/2012
A tarde solarenga convida a um passeio no intervalo de almoço e contemplar lugares que a cidade tem para oferecer. Encosto-me a uma esquina da avenida, apanho um bom sol e oiço um trompete parecido ao de Miles Davis. Encostado, sentado no tronco de uma árvore entoa temas ao estilo jazístico de Nova Orleães. Fechando os olhos ouve-se Woody Allen com o seu quinteto. Uma coluna gasta pelo uso serve de suporte, uns passam com pressa sem repararem, outros põem a mão no bolso e deixam uma moeda, por mais pequena que seja. O homem, concentrado na respiração sorri com o olhar numa espécie de obrigado misericordioso. Juntam-se alguns curiosos estrangeiros e assistem maravilhados aos sons que saem do trompete dourado gasto. Os Clérigos imponentes ao longe fazem-me viajar até lá e contemplar os sons que evocam Miles, Chet e companhia. O homem com a pele escura fruto de dias a trabalhar ao sol guarda o instrumento, olha o amontado de moedas e sorri naturalmente. Vai rua acima reconfortado porque muitos compreenderam os seus medos e sonhos expressos em notas que ecoavam na praça. Francisco Milheiro @ Baixa do Porto

terça-feira, 12 de abril de 2011

Um sorriso.... por entre a sombra

A luz que permanece
À entrada do meu quarto
Ilumina, um momento…
Um retrato

Na sombra criada pelas paredes
Viajo por entre pensamentos
Penso que o teu sorriso
Foi o maior dos meus doces tormentos

Sinto que a sombra
A imagem de ti reflectida
Na parede é tudo
O que preciso no meu dia

Sonho acordado
Com um doce
Ao mesmo tempo
Terrível pecado

Sinto o teu respirar
Ali deitada no leito
Um forte abraço
Para te sentir no meu peito

A luz que em breve
Faz-me acreditar
Que contigo vou sonhar
Num sonho feliz e leve

Todos os segundos que permaneço
Naquele, que um dia foi teu quarto
É apenas para olhar
O teu sorriso no retrato

Na sombra do quarto…
No silêncio da madrugada
Ao olhar o teu sorriso…
Sinto-te Mulher Amada

No silêncio da noite
Ouço um sorriso teu
Na calada da noite
Recebe um beijo meu

Que te encontre
A dormir…
Num sonho onde olhas
Para mim a sorrir…

Por lá da sombra
Que a lua faz em mim
Planto esta rosa
No meu jardim


Francisco Milheiro
12 Abril 2011

domingo, 21 de novembro de 2010

Carta a um tal de cancro

Olá,



Não me tenhas por mal criada por não te tratar pelo primeiro nome mas é que ele é tão feio que nem sei como te deixaram nascer... De certeza que a tua mãe era uma louca e o teu pai parvo, mas deixemo-nos de falar de ti, não mereces. Quero que saibas que quando apareceste na minha vida comecei a dar valor a coisas simples: a um sorriso, a uma gargalhada, a uma boa conversa, a MIM. Acho que apareceste numa altura em que te deu jeito mas para mim foi um má altura, foste um estorvo. Por ti tive que ficar num hospital, passar por um bloco operatório e tirar um pedaço de mim mas fico contente porque foste agarradinho a ele para o LIXO.

Como vês não és assim tão invencível, eu tinhas as minhas armas da cura mas também não te soubeste comportar como doença. Apareceste para me chatear e para me destruir, apenas um pouco de mim, porque dir-te-ia que o essencial ficou intacto: a minha VIDA. Apareceste para me chatear e agora eu escrevo-te para te dizer que consegui GANHAR. Esta batalha foi dura para mim, tive momentos em que gritei, tive outros que o simples grito não era mais que o extravazar de um sentimento já não presente... Apenas o fazia porque ao espelho me via diferente. Mas quem és tu para aparecer sem data marcada nem aviso prévio? Destruis-te tantas vidas, achavas que eras suficientemente forte para destruir a minha? Logo eu, que tenho a melhor família, os melhores amigos, a melhor profissão e um grande coração. Se por breves minutos achei que era o meu fim fizeram-me ver que afinal não seria bem assim. Aprendi a lutar, a viver ao segundo, a esquecer o passado e pensar no futuro. Se algum dia andares pela rua e te cruzares comigo não te acanhes de me dizer olá até porque te direi o que mais gostei de te dizer.... quando acordei: ADEUS! Por breves instantes causaste pânico em mim e principalmente àqueles que amo, e isso, desculpa, mas não te posso perdoar. Espero que entendas a partir de hoje a raiva com que falei de ti, mas só o fiz para ganhar as forças necessárias para te levar de vencido.

A ti que tentaste fechar a cortina antes da peça terminar... Pensa bem porque se olhares de novo para trás sabes qual vai ser o teu lugar... A única coisa que vais conseguir é incomodar porque sabes que no fim de tudo eu acabo SEMPRE por ganhar...


Francisco Azevedo

20 de Novembro 2010

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

"Retrato frio" - parte 10 de... "Sonho real.... ou sonhado?"

Porto, 12 de Janeiro

Ainda me custa a acreditar na sorte que tive... há dias diambulava como em qualquer outro sítio da cidade, independentemente da chuva miudinha que teimava em querer fazer companhia... Caminhava pela minha cidade, pelo meu lugar que infelizmente era a minha casa (a rua) e encontrei o meu anjo na terra. A Marta caminhava pela artéria onde me encontrava e apesar do meu mísero aspecto reconheceu-me. Contei-lhe a minha história e ela ofereceu-me um tecto... Até quando? Apenas o tempo o poderia dizer, desde que eu não roubasse nada nem tocasse em nada que não fosse meu ela gostava de me ter por lá. Lembro-me quando ela falou comigo na noite em que eu fui jantar: a noite que mudou a minha vida...

- Se algum dia roubares... Parou de repente! Pediu-me desculpa, pelo que eu disse:

- Marta, eu não sou ladrão, sou infelizmente sem abrigo...

- Só de pensar que um dia partilhámos o palco do Coliseu custa-me a acreditar que és tu o sem abrigo que eu descobri por acaso hoje na rua. Ainda não consegui juntar as peças todas do puzzle mas acho tudo muito difícil de acontecer. Será que este mundo é um lugar bom para se viver? Não podemos apanhar um avião e ir para outro planeta onde as injustiças só acontecem às pessoas más?

- Pois... Se calhar eu fiz algo de mal na outra vida para agora estar a pagar por esses erros. Posso-te contar um segredo Marta?

- Claro! Que se passa?

- Lembras-te de te ter apresentado os meus pais num recital na Fundação Coopertino de Miranda?

- Sim, lembro-me perfeitamente!

- Pois é! Acontece que esses não são os meus verdadeiros pais... Fiz um silêncio arrebatador quando me interrompeste com um:

- Hã!? Conta-me lá isso como deve ser...

- Então é assim: quando eu nasci, a minha verdadeira mãe não tinha como tomar conta de mim, ela era mulher a dias na casa dos meus tios, o Justino e a Joana. Eles tinham muito dinheiro e conheciam casais que eram influentes importantes na cidade, muitas ligadas ao comércio do vinho do Porto e então os meus pais adoptivos ficaram comigo desde o primeiro mês... Sempre os vi como pais, aliás, não tinha porque não os ver... deram-me o mundo, o mundo que eu sempre gostei.

- E sabes agora onde anda a tua verdadeira mãe?
....
- Tenho medo de a ver! Não sei onde vive. Há tempos lembro-me de ter encontrado um senhor que conhecia a minha mãe, de seu nome António, não me perguntes como é que ele me reconheceu, nem eu sei como tu me reconheceste. Tinha-me dito que a minha mãe tinha saído da casa dos meus tios passado pouco tempo de me terem deixado ao cuidado dos meus pais adoptivos e foi viver / trabalhar para Espanha, mais concretamente em Barcelona. Começou por trabalhar como empregada de limpeza num restaurante no bairro gótico, depois passou por um hotel como empregada de andares e só saíu de lá quando tinha dinheiro suficiente para viver aqui em Portugal mas não sei exactamente o ano em que regressou. Ele disse-me que não sabia onde ela vivia mas que ainda era viva... Quando ele me disse que ela estava viva pensei em correr a cidade de fio a pavio mas também não tinha a certeza que ela morava no Porto, nem tão pouco como ela era agora. Diz-se que os pais reconhecem os filhos, mas o inverso.... ainda estão por confirmar.

- Não conheces ninguém que te possa ajudar? Tens o nome dela? Conheces mais alguém?

- Não! Só sei que durante anos fui feliz com pessoas que achava que eram meus pais. A minha mãe deve ter sofrido com a separação e agora deve sofrer se souber que vivo, ou melhor, vivia na rua. Mas sinceramente não sei o que nem como vou fazer.

- Vais procurá-la! Eu vou ajudar-te!

- O que virá por aí, Marta?

- Um futuro melhor...

Quando ela me disse estas palavras soltei uma lágrima, que desceu pelo meu rosto aos meus lábios. Nesse momento senti ao mesmo tempo forças para a procurar mas falta delas para continuar a lutar... Já passaram anos... A minha mãe não me vai reconhecer, nem eu a vou conhecer. Será que o destino não quer que eu seja feliz?


Porto, Rua da Torrinha nº 215

"Retrato frio" - parte 9 de... "Inesperado encontro"

Dei por mim a vaguear numa artéria que há muito não visitava mas não me lembrava sinceramente do nome, logo eu, que conhecia a minha cidade como a palma da minhã mão, como diria um amigo meu: eu era um gps em corpo de homem! Seria ela uma rua por mim inventada como se estivesse num filme ou uma personagem de um qualquer livro ou seria ela uma rua que um dia foi minha por empréstimo...

Divagava nos meus pensamentos quando ouvi alguém chamar por mim, uma voz doce, incrivelmente feminina mas não consegui saber de onde vinha. Estava já a perder a esperança quando uma menina, ou diria mulher, de olhos castanhos e cabelos compridos parou diante de mim:

- Mário Barreiros! És mesmo tu!? Não te lembras de mim?

Sou sincero que a voz não me era estranha mas a sua cara era um completo mistério...

- Desculpe, não estou a ver quem é.

- Marta! Do Coral de Letras, partilhámos o palco do Coliseu há dois anos.

- Ah...! Sim, desculpa não ter visto que eras tu mas como me reconheceste? Já viste como eu estou?

- Reconhecer-te-ia até no fim do mundo numa qualquer rua de Hong Kong ou Nova Iorque.... Mas o que se passou?

- Já percebeste que eu não sou..... quem fui!

Lembro-me que nesse momento baixei-me, fiquei bem perto do chão, sentei-me num degrau que dava acesso a uma joalharia e pus a cabeça nos joelhos, como se tivesse vergonha de lhe mostrar o meu verdadeiro eu...

- Mas, o que se passou?

- Bem, a história é muito comprida, não sei se vais gostar de ouvir nem sei se terás paciência para me aturar....

- Mário! Conta, eu quero-te poder ajudar! Sempre foste uma referência para mim, não vais deixar de o ser...

- Basicamente a história da minha vida resume-se a isto: há pouco tempo era feliz, de um dia para o outro perdi tudo... O dinheiro dos espectáculos não apareceram mas nem isso me levou a parar de fazer compras megalómanas e supérfulas. Comprei um piano de cauda para a minha casa em troca de um de meia, comprei um carro para a minha mulher e outro para mim e forrei o salão com colunas de alta potência e montei uma estúdio aqui bem perto do centro. As dívidas começaram a acumular, um dia quando estava a chegar a casa estavam lá dois agentes da PJ que tinham um mandado do tribunal para me penhorar tudo o que tinha para pagar o que devia... De um dia para o outro perdi a minha mulher, o meu filho, o meu cão, a minha casa.... Enfim, a minha vida! Desde o dia dois de Dezembro que vivo num chão frio ali perto do Rivoli nas arcadas do Banco. Nunca mais me ligaram para concertos apesar de ainda ter o mesmo telefone que vou carregando aqui e ali à sucapa, o meu agente desapareceu sem deixar rasto, abandonou-me com um dinheiro que tinha de parte e fugiu para parte incerta. Eu é que continuo sem destino, ou melhor, sei qual vai ser o desfecho: morrer aqui ou ali.... na rua!

- Não digas isso Mário! És um grande músico, encheste salas, tocaste com as melhores filarmónicas, viajaste pelo mundo porque te queriam ouvir. Vais ver que isto é só uma fase. Olha, porque não vens jantar lá em casa hoje? Há quanto tempo não tocas piano?

- Não, obrigado... Não quero nem posso incomodar, sou um sem abrigo, sou mais um no meio de tantos desta cidade. Já não sou o Mário Barreiros que enchia salas nem tão pouco o que ficava hospedado em hotéis de luxo...

- Vais sim senhora! Eu insisto, és meu convidado...

- Desculpa, mas não posso. Não posso voltar por momentos a sentir um conforto de lar e umas horas mais tarde estar a dormir.... ao relento, numa fria noite que nem o luar me aquece...

Marta olhou para mim com uma lágrima no canto do olho, parou durante alguns segundos para pensar no que me iria dizer depois de eu lhe ter dito isto....

- Ficas em minha casa estas noites, eu estou sozinha, aliás, vivo sozinha. Se nos dermos bem e se pagares a renda não tens porque te ir embora. Vem viver comigo durante uns tempos, vais ver que ainda vais encontrar de novo a felicidade e o caminho dos palcos...

Ao ouvir isto os meus olhos ergueram-se para ela, esperei tanto por um momento como este.... Casa, conforto, cama com colchão, cobertores.... Palavras pequenas mas que para mim tinham ganho um novo significado e importância. Acho que foi a primeira vez que chorei em frente a alguém... nem mesmo na morte do meu pai chorei, não estive presente, estava no estrangeiro para dar mais um recital.

- Mas eu não sei onde tu moras, não te quero incomodar...

- Rua da Torrinha nº 215! É fácil, vais de táxi, pega dinheiro...

- Não te preocupes! Eu vou lá ter, vou levar o que ainda me resta....

Faltavam poucos minutos para as oito e meia quando toquei no número 215 da rua da Torrinha, com uma mala quase vazia dos meus pertences e um chapéu meio desfeito na outra... Era o que eu usava para estender às pessoas por quem passava na esperança que alguém com um bom coração me desse uma moeda ou duas para uma sopa, porque tudo o que me davam era para me sustentar, não para me drogar como acontecia com outros sem abrigo.... neste Porto sem sentido!



Sem muito esforço.... enquanto a porta vermelho meio desbutado não se abria, pensei para mim mesmo:

- Não posso ter expectativas muito elevadas! Quero mudar a minha vida mas preciso que me ajudem... mas não posso pedir tamanha ajuda à Marta. Ela não merece que eu faça isso...

Enquanto a minha mente pensava em alguém que me ajudasse a escrever um novo capítulo da minha vida a porta abriu-se com um sonoro:

- Bem vindo a casa!

- Obrigado! És um anjo!

Jantámos pela cozinha, há muito que não tinha uma refeição completa, de comida caseira acabadinha de fazer. Arrumei tudo, aprendi os lugares das coisas.... sentei-me ao piano, toquei Chopin e a minha que me fez lembrar.... o momento em que eu era ALGUÉM. Hoje talvez seja o dia em que componha uma música que comece com a seguinte frase:

Há tempos descobri...
Que nada sabia...
Foi preciso viver fora do meu ninho...
Para saborear as coisas simples do dia-a-dia!


Fechei o tampo, pousei os cotovelos sobre o Samick que estava na sala e soltei uma furtiva lágrima. Lágrima causada pelo conforto e paz que há muito não sentia... Um conforto na alma e coração numa noite fria...


Porto, 12 de Janeiro

sábado, 13 de novembro de 2010

"Retrato frio" - parte 8 de... "Mais uma noite"

Porto, 6 de Dezembro

Foi a segunda vez na minha vida, a segunda como sem abrigo neste Porto sem sentido que fui para a esquadra da Polícia, no caso, a décima sétima esquadra, ali bem perto da Avenida da Boavista... Estava com o António na rua do costume (parece mal dizer isto) e chegou a polícia em duas carrinhas e puseram-nos numa espécie de uma "jaula", fui mais uma vez identificado e voltaram a não acreditar quem eu era, já não tenho bilhete de identidade. Esse perdi-o, deixei-o em qualquer lado, até porque infelizmente já não sou ninguém... Já fui!

Senti-me tão mal quando entrei naquele sítio ermo e frio, vi pessoas que nunca pensei ver, cruzei-me com polícias que conhecia mas que não me dizem nada, olham-me com desdém, como se eu fosse o maior dos criminosos, o mais procurado dos terroristas... Eu! Que não faço mal a ninguém, que até há bem pouco tempo enchia salas de espectáculo e cheguei a dar uns autógrafos no meio da rua como se fosse uma estrela de Hollywood. A estrela que brilha neste momento é a que está no céu, a que eu vi ontem à noite quando me deitava nas arcadas frias de uma praça no centro. Voltaram-me a fazer as mesmas perguntas, o que estava ali a fazer, estava a mando de quem, para que é que estava a arrumar carros, se estava a ganhar dinheiro para sopa ou para droga... RAIOS! Já disse que não me drogo, não estou a mando de ninguém, sou mais uma das muitas vítimas nesta cidade e neste país onde só reina quem é artista ou vigarista. Voltei a dizer que tinha sido músico mas a vida me deu uma bofetada, ao que o chefe Martins dizia:

- Isso é o que vocês dizem todos! Não passam de um chulos! Quando é que vais buscar o teu rendimento?

- Não tenho rendimento, não tenho nada! O que ganho gasto em comida, café e tabaco, que infelizmente voltei a fumar...

- Pois! A vida tem destas coisas...

Acabei por ficar detido algumas horas, quando voltei a ver a luz do dia desci até à beira-rio e chorei, chorei, chorei.... Tinha vergonha de me ver ao espelho, queria muito suicidar-me mas tenho medo para o fazer! Até nisso sou covarde! Sentei-me bem perto de um casal de japoneses, que exibiam as suas máquinas Canon com objectivas xpto... Ai! O que me passou pela cabeça: roubar para ter um tecto por uns tempos em Custóias, estava mesmo desesperado... Mas depois pensei melhor e deixei-os ficar por ali a contemplar a beleza daquela que já considerei ser "a minha cidade". Hoje considero a "minha casa". Estava tão sereno junto ao rio que me deixei ficar por ali até ao entardecer, subi a rua que ia dar à Estação de S. Bento e comi um hamburguer (mais uma vez...) com vista para o edifício da Câmara. Ainda estava a pensar onde ia dormir... Lembro-me do António me ter falado do "Coração da Cidade" que servia uma refeição quente uma vez por dia, que eu devia ir lá para comer uma refeição minimamente decente e buscar um cobertor para estas noites... que se esperam muito muito frias! Ainda não foi desta que fui ao "Coração da cidade" mas amanhã vou... Estará lá a minha salvação? Adormeci uma vez mais perto do Rivoli, não estava muita gente a assistir ao teatro, ou então saíram por outra porta que eu desconheço... Duas almas caridosas tiraram da carteira um euro e pensei:

- Já vai dar para tomar o pequeno-almoço! Uma boa refeição terei de fazer por dia, e eu dou muita importância ao pequeno-almoço...

Mas hoje, sinto-me um pouco mais em baixo, triste porque é hoje o dia de aniversário da minha Teresa... Onde andarás? Só de pensar que o ano passado fomos reviver uma das primeiras viagens que fizemos: Nova Iorque... Foi nessa viagem que eu perdi a cabeça e te levei a um concerto ao Carnegie Hall, onde actuou brilhantemente passado uns anos a Mariza, essa incrível e inconfundível voz do fado. Nunca mais me esqueço: gastei trezentos e cinquenta dólares nos bilhetes, fomos ver um concerto a quatro mãos: Mikhaïl Pletnev e Alexander Mogilevski. Foram momentos únicos... foi um sonho tornado realidade: ver um concerto de dois conceituados pianistas numa das melhores salas de espectáculo do mundo. Foi como uma segunda ou terceira lua-de-mel, foi mesmo muito bom: fomos só nós... levei a minha Canon e tu eras a minha modelo. Mal sabia eu que passado um ano estava nesta situação... Em que é que falhei Teresa? Podes-me dizer? Dá-me um sinal para que eu possa deixar de ser o actor principal nesta história... prefiro estar no lado do público, ao menos assisto à desgraça do lado de fora... Mas quem é que disse que a vida era justa?

Só os tolos é que acreditam nessa frase! Há tempos li um romance de um conceituado escritor português que se entitulava de "O amor é para os parvos"! Hoje pretendo mudar esse título para: "A vida de rua é para os que foram parvos...".

"Retrato frio" - parte 7 de... "Mais uma noite"

... Foi a segunda noite fora de casa, daquilo que todos chamamos de lar, custa-me tanto pensar que já tive um salão com um piano, uma sala de jantar com cadeiras confortáveis, uma sala de estar com música e livros... Agora, a minha sala são as arcadas na praça D. João I, o meu salão é a avenida dos Aliados, onde eu passei o dia de hoje. Não choveu, não estava o gélido frio de Dezembro, estava um sol típico de inverno, podia estar forte mas não aquecia... Arrumei carros novamente na zona do St.º António com o meu "colega" e partilhámos um almoço ali perto. Ainda hoje ele me perguntou o que eu fazia antes de ser isto que hoje sou... Não lhe disse que era músico, que enchia salas de espectáculo, que viajava em primeira classe, que tinha limousines à minha espera no aeroporto, disse-lhe apenas:

- Fui artista... mas não me perguntes mais nada sobre a minha vida...

- Desculpa! Não era minha intenção. Mas eu posso-te falar sobre a minha vida: olha, a minha vida passou a ser esta: há bem pouco tempo... Eu era advogado, estava em lisboa no CEJ para tirar o curso de juíz só que entretanto a minha filha adoeceu e a doença que ela teve, eu digo teve, porque faleceu o ano passado era rara, muito rara aliás, e eu empenhei quase todas as minhas economias para a levar para o estrangeiro... Não me resolveram o problema mas ficaram com muito dinheiro, a minha mulher foi-se abaixo e pôs baixa no emprego, acabou por ser substituída por uma rapariga ucraniana que mal sabe falar português, mas é muito bonita. Quando morreu a minha filha eu fiquei desesperado e tentei recuperar o meu emprego que até então estava de baixa, mas também puseram um rapaz novo no meu lugar, sabes como é: eu era advogado, tinha contactos previligiados na polícia judiciária aqui no Porto e quando dei por mim já estava mais do que metido nos meandros da droga. Lembras-te de ouvir falar do assassinato da Gisberta? Aquele travesti naquele edifício perto da avenida Fernão Magalhães?

- Sim, lembro-me bem!

- Pois é, eu fui das pessoas que presenciei o crime, eu estava nesse malfadado edifício a comprar a minha dose diária de heroína quando ouvi uns gritos, aproximei-me, aquilo era muito escuro e perigoso... Aproximei-me e então vi um grupo de miúdos a bater no pobre coitado, que já estava condenado à morte porque para além de toxicodependente tinha HIV, por isso tás a ver..

- Que cena! E o que fizeste?

- Nada pá! Eu não fui maluco ao ponto de ir ali para o meio deles. Ainda ficava eu também lá estendido... Vi-os a maltratarem o coitado e a atirarem-no para o fundo do poço, que supostamente era uma caixa de elevador. Eu fugi daquele lugar, queria-me salvar, custasse o que custasse. Entrei no primeiro café que vi aberto e gritei por socorro, para chamarem a polícia e uma ambulância, que tinha acontecido uma tragédia naquele prédio... Toda a gente sabia que eu era toxicodependente e toda a gente sabia que aquilo era um lugar povoado por travestis e drogados. Alguém gritava do fundo do café: "Eu sei o que tu queres, queres que o pessoal saia a correr para a rua para tu roubares o dinheiro da caixa...". Fiquei com uma raiva daquele senhor... e não o conhecia de lado nenhum, outros diziam "A polícia vai lá muitas vezes mas não têm coragem de fazer nada, este país é uma vergonha...". Conclusão: ninguém se acreditou em mim e o corpo permaneceu lá durante três dias... mas a polícia cercou o edifício e fazia várias passagens por lá. Eu fugi... a minha pessoa já não era bem vista pela polícia, eu já não era sequer o ex-advogado, era o toxicodependente António...

- E foi a partir daí que vieste para aqui?

- Sim! A minha vida como arrumador começou aqui, eu dantes não traficava, só consumia, a partir do momento que comecei a conhecer outras pessoas e a ter mais "contactos" fui ganhando mais e mais.... Isto depois é um vício pá! Não julgues que vai ser diferente contigo...

- Mas eu não me drogo!

- Pra já! Quando se vive na rua casa-se com a rua e com todos os males que ela traz. Eu também não me drogava: só conhecia os traficantes pá! Eu já andei atrás deles, eu não, os meus amigos da PJ...

- Mas António, nunca tentaste pelo menos sair disto...?

- Meu amigo, ainda estás muito verde. Conta-se pelos dedos os gajos que estão metidos nisto e saem. Há malta que eu conheço a quem lhes vendo produto que estão enterradas até ao pescoço e que não se importam de ficar presos uns dias, têm uma cama para dormir e um cobertor para as aquecer... Isto é fudido! Não conheces a vida da rua...

Aquelas palavras ficaram-me na cabeça: "Não conheces a vida da rua...". Quererei eu conhecê-la? Será que eu consigo voltar para trás? Puxar a "cassete" atrás e viver mais contidamente? Tantas questões coloco mas não tenho resposta... Se calhar não tenho remédio, é mesmo este o meu destino: ser homem sem tecto e sem rumo... Meu Deus, eu que já fui pianista... As minhas mãos não as reconheço, nem sequer lavando.... Que bicho me tornei! Que merda fui fazer...! Puta de vida!



Passei a noite nas arcadas da Praça D. João I, consegui receber umas esmolas de umas pessoas que saíam do teatro... valha-me o La Féria, que tem aqui gente... Esses trocos vão-me dar muito jeito para amanhã: voltei a fumar... mais um vício que eu quis e consegui deixar... A noite foi muito dura, apesar de ter vestido roupa muito quente que ainda tenho no saco não chegou... consegui arranjar no meio de entulho uns cartões para pousar no frio chão do Porto e "forrei" com fita isoladora... não que tivesse esperança que me isolasse do frio... mas ao menos que me ajudasse. Ouvi sirenes, buzinas (a meio da noite imaginem!) e um desastre aqui bem perto nos semáforos... olhei o céu do Porto e vi uma estrela cadente, pedi um desejo:

- Viver uma vida decente! De preferência antes da noite de vinte e quatro...!
Porto, 5 de Dezembro

"Retrato frio" - parte 6 de... "Não digas isso por favor"

... Estava longe de imaginar que hoje seria o pior dia e a mais fria noite da minha vida, nunca pensei (nem em pesadelos) chegar a este ponto. O Eduardo chegou a casa mais cedo do que o habitual, as minhas pernas não se perderam tanto como o habitual pelas ruas do meu Porto, à qual um dia chamei de "Porto de Abrigo"... Era mesmo isso que eu ia precisar mas nunca pensei que ia ser tão depressa, ou melhor, nunca pensei que isso fosse acontecer. O Eduardo entrou em casa e disse-me que ia sair de Portugal por uns tempos, não sabia quanto e que ia deixar a casa a um familiar, por isso, era o meu fim no conforto do lar. Nunca mais me esqueço, olhei-o nos olhos, com os meus lavados em lágrimas:

- Não me faças isto, por favor! Porque tens de ir? Logo agora que eu preciso de ti...

- Mário, não me ponhas pior do que já estou, ainda podes tomar um banho e eu arranjo-te as minhas roupas de inverno todas, vou amanhã para os Estados Unidos..

- Leva-me contigo! Começo lá uma nova vida, ninguém me conhece... Aqui já não sou o Mário que enchia salas e que as pessoas veneravam nas boémias Galerias e Foz Velha.

- Desculpa, tens de ir embora hoje.

- Para onde vou? Dormir em que sítio? Já não conheço a minha cidade, sinto-me um pedaço de mau cheiro neste pequeno mundo que é o Porto. Só te tenho a ti, não me faças isso...

- Desculpa-me, não quero fazer mas tens de ir.

Fiz as malas, arrumei tudo o que tinha meu e dele (que me ofereceu) tomei um último banho (sabe-se lá quando tomarei o próximo), hoje serei oficialmente, mas não o digo orgulhosamente, um sem abrigo do Porto, mais um dos seiscentos e oitenta e cinco... Ai! Que faço à minha vida? Se eu fosse forte atirava-me para a frente de um comboio mas nem isso tenho coragem para fazer. Durante o banho vieram-me à cabeça todos os bons momentos que vivi com o Eduardo pelas noitadas do Porto, pelas noites à conversa com inglesas e alemãs e depois deliciá-las com música, ora em minha casa, quando eu era solteiro, ou no Twins no velho piano de cauda Steinwag; os dias de ensaio, os poemas que ele escrevia e que me ligava, fosse a que horas fosse, meu Deus, e agora isto! SEM ABRIGO! Sem um tecto para me proteger, sem uma família para amar... Resta-me uns euros na carteira, tudo o que guardei "debaixo do colchão" de alguns concertos. Não tenho esperança nenhuma de recuperar o que me devem, mas agora não consigo pagar nem ao meu melhor amigo um jantar para me despedir...

Esta primeira noite vai ser a pior de todas: o frio aperta, a polícia ronda os lugares onde os sem abrigo se escondem, uma criança brinca indiferente com o barulho das ambulâncias rumo às urgências do St.º António. Para onde vou? Arcadas do tribunal? Fingo-me doente e arranjo uma cama pelo menos esta noite no SO? Sinto-me um animal abandonado, divago, vagueio, perco-me no meu Porto. Encostei-me a um banco nos jardins da Cordoaria, não preguei olho a noite toda... O amanhecer chegou devagar e com ele veio a chuva e o vento gélido de Dezembro. Ai! Será que me restam muitos dias como sem abrigo? Conseguirei sobreviver neste "mundo" da sobrevivência? Nunca pensei chegar a este ponto: arrumei carros durante a manhã, bem perto das consultas do hospital de St.º António, travei conhecimento com o António, aquele arrumador que por um ano não foi juíz... Arranjou-me um cigarro e deu-me lume. Nem o quente do café que tomei há minutos me aqueceu suficiente as mãos, quanto mais a alma. Não me sinto, nem física nem mentalmente forte para aguentar o que ainda agora começou e está para se agravar. O dinheiro que fiz deu-me para uma refeição económica para os lados dos Aliados: uma sopa quente, um chá quente (como bebida) e um prego mal amanhado mas que me soube pela vida. A tarde foi fértil em termos de "arrumação" de carros, ainda há pessoas que vêm de uma forma menos má os arrumadores, apenas estamos ali para os ajudar... Quem diria eu, que até há bem pouco tempo dava um euro a um sem abrigo para me ajudar a arrumar o carro hoje sou um deles! Que vergonha...! Não me olhei ao espelho quando fui à casa-de-banho do snack-bar para fazer a minha higiene pessoal: ainda tenho pasta dos dentes e a minha escova, o desodorizante está a acabar... A minha vontade de viver, sinceramente também...

Acabei por comer um hamburguer no MacDonald´s dos Aliados por me encher o estômago e ser barato. A noite, essa? Passei-a nas ruas da confusão, nas Galerias. Comprei um maço de tabaco (é dos poucos prazeres que ainda posso satisfazer) e o jornal roubei a uma senhora que adormeceu no café... Nunca me imaginei a fazer tal coisa, mas é certo que o fiz. Li as notícias do país:

- Portugal em crise!

- Marido mata mulher à facada por ciúmes do vizinho

- Porto vence em hóquei

- Viagem ao Brasil do Presidente X

Tudo isto que parecia banal, quando eu tinha o meu emprego, agora parecia-me ainda mais! Não tenho nojo do meu país, não tenho raiva do meu governo, só tenho pena de mim, por ter chegado onde cheguei e agora não saber o chão que pisei. A noite está a chegar e eu tenho medo... medo dela não passar. Amanhã é mais um dia, se lá chegar...



Porto, 4 de Dezembro de 2003

"Retrato frio" - parte 5 de...

"Minha velha e querida Praga..."

Foi com algum espanto, devo dizer (para quê mentir!?) que recebi um convite de uma sala incrível do mundo do espectáculo, a Ópera de Praga convidou-me para um recital que ia acontecer em Janeiro... Sempre tive Praga no meu coração, aliás, lembro-me que foi em Praga e na República Checa que passei uma das melhores férias da minha vida, com a Joana, a minha primeira namorada. Não me lembro de ter tido uma miúda como ela, era mesmo sensacional como pessoa e sobretudo como AMIGA. Até há bem pouco tempo ainda falava com ela quando vinha ao Porto jantávamos sempre e ficava em minha casa, até tomava conta do meu filho, pouco tempo depois de ele ter nascido para a Teresa poder assistir a um recital meu na Avenida da Boavista.



O recital que eu tinha de preparar era sobre autores e compositores checos, Kafka sempre foi um dos meus autores preferidos (em termos literários), em termos musicais conhecia poucos checos... mas lá fui investigar o que havia na biblioteca onde guardo, religiosamente e alfabeticamente as obras musicais. Lembro-me que liguei para a minha primeira professora de piano, a professora Helena do Conservatório de Música do Porto e ela lá me deu umas indicações sobre que obras e estudos tocar... Sempre gostei dela, muito atenta nos meus erros (isso era o lado menos positivo, pelo menos na minha tenra idade), aconselhou-me:



- Bedrich Smetana (por muitos considerado o PAI da música checa, foi ele o compositor da famosa peça "Má Vlast", traduzindo dava "Minha Pátria" e que evocava o Rio Moldava, o rio que atravessa Praga que é tão famoso...

- Antonin Dvorák (compositor checo do período romântico que usou nas suas obras muitas melodias populares da Morávia e da sua Boémia natal.


Escolhi o tema principal do Bedrich e de Antonin seleccionei "Danças Eslavas", eram temas bastante alegres e quis na altura convidar Sofy Vlag, uma pianista exímia no clássico e romântico... Encontrei-me com ela, por acaso numa noite do Porto, ela estava cá para fazer um recital com a Orquestra Nacional e eu andava a passear-me pela Foz. Era uma referência para mim, apesar de eu ser mais velho. Aceitou desde logo o convite... Eu estudei outra vez sobre Praga para saber onde ia voltar a passear, escolhi o hotel, fiz as malas com a Teresa e partimos... Já estávamos habituados a estas andanças mas estávamos longe de imaginar o que nos ia acontecer quando chegamos a Praga... Limousine, shouffer e suite presidencial. Foram os dias mais felizes das nossas vidas. Éramos o mundo, tínhamos o mundo aos pés... Bastava estalar o dedo que tínhamos o que queríamos. Jantámos por Praga no hotel na primeira noite, a viagem apesar de não ser muito longa foi atribulada... Voltámos a captar umas imagens na zona do Rio Moldava, com o incrível palácio no pano de fundo. Éramos mesmo apaixonados por aquela cidade e queríamos viver ao máximo aqueles momentos a dois, enquanto eu tinha um tempo... Foi então em Praga que falámos sobre o futuro, casar, ter filhos, ter uma casa com piscina, eram os nossos sonhos, iguais a tantos outros casais. Falámos sobre paixões antigas e aventuras, romances e paixões de verão, e eu contei-lhe sobre uma aventura em Brasília aquando da minha passagem pela capital do nosso país irmão para entoar os sons da "Garota de Ipanema" e outros temas do Tom Jobim e Vinicius de Moraes, na altura falei com Marília Gabriela para a "Rede Globo", tinha conhecido uma brasileira no bar do hotel, tomámos uma cerveja e mais umas caipirinhas e tivemos uma noite de paixão. A Teresa contou-me de um engate numa noite de verão no velho Swing na Foz com um italiano de seu nome Marcello. Fiquei tão curioso com a história que qunado cheguei ao quarto do hotel comecei a escrever algo sobre isso, sobre os romances de verão no tempo em que não se dizia a palavra NÃO!

Fiz o primeiro ensaio com Sofy Vlag na quinta-feira depois de almoço, tinha umas mãos como eu nunca tinha visto numa mulher... Dedos compridos, movimentos rápidos mas seguros, tensos mas suaves nas teclas do steinway que eu tinha pedido. Foi uma tarde agradável de trabalho, partilhámos segredos, descobrimos gostos em comum, ela também era do Futebol Clube do Porto e tinha uma curiosidade sobre a vida e obra de Smetana. Jantei com a Teresa e convidámos a Sofy para uma taça de champanhe no hotel depois do jantar. Ela compareceu imperetrivelmente às vinte e duas horas com o namorado e também músico, David. Foi um serão agradável que acabou no piano do hotel: um "concerto" a quatro mãos, eu e Sofy enquanto que a Teresa e David conversavam... Nunca fui possessivo nem quis ser controlador mas o que é certo é que senti o meu lugar ameaçado por algumas vezes... Eu sabia que a Teresa me amava mas podia uma amizade tornar-se numa "paixão numa noite de verão"... No caso nem podia ser porque estavamos em Janeiro... O recital foi incrível, fui muito bem recebido pelo público checo, que desde logo comecei a perceber que tinham algumas parecenças com o público do Norte do meu Portugal, o meu tão aclamado Porto. A noite correu tão bem que fui convidado a permanecer mais uns dias e fazer um concerto com a orquestra sinfónica de Praga, devo dizer, que esse era um dos meus sonhos: tocar com uma orquestra de renome internacional, não desfazendo a "minha" do Porto.

Foi nessa noite... na noite em que pensava que seria a nossa útlima noite que fizemos amor e foi nesse momento que percebemos: era altura de dar o nó. Aproveitámos a estadia em Praga e tratamos tudo às escondidas da família e dos amigos, quisemos ser níos a escolher tudo... Desde roupa a convidados. A minha velha e querida Praga ficaria marcada para sempre, novamente na minha vida. Foi aqui que tudo começou.... Que nós geramos uma família.

"Retrato frio" - parte 4 de...

Ainda tive de esperar largos minutos pelo Eduardo, não sei bem quanto tempo. Isto de estar na rua (e eu ainda não estou a 100% na rua, ainda tenho um tecto para viver, tem que se lhe diga. É mesmo triste ficar o dia a ver pessoas passar apressadas para o trabalho, e nós... divagarmos pela cidade sem rumo e sem objectivos. O Eduardo parou o carro mesmo à porta de casa, eu já estava com uma cara mais ou menos decente. Chegou à minha beira e disse:

- Desculpa pela demora!

- Não faz mal...! Disse-lhe com uma voz ainda tremida pelo susto e vergonha que senti por ter sido interrogado pela polícia... Eu! Um homem que até há bem pouco tempo era uma referência na minha cidade, hoje, sou um merdas que vagueia sem rumo em busca da sua felicidade... Como fui feliz! Entrámos no apartamento, fechei-me na casa de banho por largos minutos para chorar baixinho, tinha vergonha que me vissem assim, sempre tive! Nunca fui de chorar em frente às pessoas, nem mesmo no funeral do meu avô com quem tive uma relação muito próximo nos vinte e seis anos que o tive a meu lado... Lavei a cara, assoei-me, e dirigi-me à sala, onde o Eduardo já tinha uma cerveja "em meu nome"! Tive vergonha de lhe contar mas precisava mesmo de desabafar. Não me considero um sem abrigo (como já disse) mas o meu aspecto físico envelheceu muito desde que o mundo desabou, estava habituado a ouvir histórias de miséria na televisão mas sinceramente, quando ela nos bate à porta e deixamos de poder assistir a ela "do lado de fora" é bem mais complicado. Se pensar que há meia dúzia de dias era um homem realizado, feliz, hoje sinto-me um verdadeiro inútil, nada faço pela minha cidade, muito menos pela sociedade. O Eduardo ficou de boca aberta enquanto me ouvia a contar o sucedido, tive tanta vontade de chorar mas continuo a ser o mesmo covarde de sempre, prefiro chorar em privado para ninguém ver.

A noite? Essa, passei-a em claro e quando a manhã chegou voltou, pensava eu, o meu pesadelo, mas não. O Eduardo ia ficar em casa, por isso, não precisava de ir para a rua. Pedi-lhe emprestado uma lâmina nova e desfiz a minha barba. Olhei-me ao espelho depois do banho mas mesmo assim me era difícil reconhecer. Tomámos o pequeno-almoço ao som de música clássica, do recital que ele tinha gravado "clandestinamente": eu e constantin sandu em Budapeste! Esse, foi um verdadeiro recital, depois foi a vez do concerto aqui no Porto na casa da música. Por momentos, por já não saber quem sou, ouvia as notas soarem das colunas B&W da sala de jantar e nem sequer sabia distinguir uma nota das outras, para mim era tudo igual... Eram sons, esses que saíam de um Steinway de concerto, já não me recordo se tinha quatro ou seis metros de cauda. Lembro-me muito bem do check sound que fizemos, a sala ainda vazia.... Vazia estava a minha cabeça das emoções que agora sinto. Dantes não tinha problemas, não sabia o que era passar fome, não sabia o que era pedir... Costumava dizer: A música, vivia para a usar e usava-a para viver. Nunca pensei chegar a este ponto: não poder ter o meu piano (que tenho de facto saudades), não ter a minha casa, o meu sistema de som e o meu plasma... Como é possível em tão pouco tempo descer do Paraíso ao Inferno? Foi o terceiro dia como "sem-abrigo" no meu Porto sem sentido. Hoje talvez vá dar uma volta pela cidade quando for noite, com o Eduardo. Vou conhecer a realidade que um dia, cada vez mais me convenço, que será a minha. Mas não quero pensar muito nisso... Já estou mal o suficiente para prever um futuro pouco risonho, diria mesmo, NEGRO!

Quando a noite chegar sei que tenho uma cama de lavado para dormir... Amanhã? Quero acreditar que sim, mas não quero abusar de quem cresceu e se fez homem comigo, o Eduardo.

Começámos a nossa viagem pelo verdadeiro centro do Porto, lembro-me de ter a imagem do video-clip do meu antigo amigo Pedro cujo tema falava sobre os fantasmas, e esse video-clip foi gravado nas ruas do Porto, eram filmagens com sem-abrigos, no final da música aparecia a seguinte mensagem: Em Portugal, quase 9 mil pessoas dormem na rua. Só no Porto são 685... Este número impressiona, de facto. O que mais me assusta não é esse número voltar a crescer, porque infelizmente vivemos numa sociedade e num mundo em que se vive acima das possibilidades, só temos preocupação de ter um carro mais caro que o do vizinho, mesmo que tenhamos de passar fome, de passar férias no Brasil ou na Patagónia, mesmo que para isso tenhamos de nos endividar até ao pescoço...., eu infelizmente, caí no erro de viver acima das minhas possiblidades, mas o que mais me assusta é que possa vir a fazer parte desse número, dos tais 685. O primeiro sem-abrigo que abordámos chavama-se Pedro, um homem que toda a vida trabalhou e viveu da construção civil, um trabalho honesto como qualquer outro mas que infelizmente fechou portas a empresa onde trabalhava. Conta-nos com um brilho no olhar, apesar de já viver na rua há mais de dois anos, o quão importante foi na sua empresa. Foi responsável pelas obras em alguns edifícios da cidade, nomeadamente Casa da Música e o edifício transparente na zona da Foz. Trabalhou desde os quatorze anos, hoje, com quarenta e cinco olha a vida com preocupação e com apenas uma certeza: faz parte das pessoas que perderam tudo: família, casa, amigos... Estendeu a mão para pedir esmola, arrumou carros nas zonas mais movimentadas do Porto, esteve preso por tráfico de droga e saíu em liberdade para voltar à rua... Hoje continua a ser arrumador, e a sua casa são alpendres e arcadas espalhados pelo Porto. Diz, com alguma ironia: eu? Já vivi de frente para o mar.

O segundo sem-abrigo com quem falámos tinha uma história que nem em livro as pessoas acreditariam: estávamos perante um Dr. Exactamente! António, um arrumador que "ganhava" a vida em frente ao hospital de Stº António foi advogado de profissão, conta-nos mesmo que: Por um ano não foi juíz. Lembro-me que uma amiga minha, psicóloga clínica, e neuro psicóloga no Stº António me falou dele uma vez. Era um arrumador extremamente educado, não chateava as pessoas, estendia a mão, se as pessoas quisessem dar davam, senão ele virava as costas e fazia mais uns metros a pé... Foi mais uma história que me impressionou na altura, e hoje estava perante ele. A minha amiga, de seu nome Cátia sempre teve uma "veia" solidária muito apurada e como ganhava bem, apesar de tenra idade, ajudava no que podia os sem-abrigo, não se limitava a dar a moeda, porque a maior parte não as usa para comer, usa para comprar a dose diária de droga ou álcool. Lembro-me dela contar a história: um dia estava a chegar de manhã ao hospital e abordou o António, homem alto e de corpo esguio. Quis saber um pouco da sua história porque sempre o tinha visto como um "arrumador diferente", ao ouvir isso ele disse:

- Pois é, Dra. Cátia. Eu sou mesmo diferente. Em pouco mais de um ano perdi tudo... família, amigos, casa, emprego. Imagine que por um ano não fui juíz. A minha filha, que até então eu pensava ser uma criança saudável começou a ter uns problemas de saúde que depois se veio a confirmar que eram devido a relações sexuais sem protecção e com vários "personagens" da nossa urbe. A minha mulher nunca trabalhou e eu trabalhava e estava a fazer na altura os estudos no CEJ em Lisboa, ia uma vez por semana e vinha de comboio. Como advogado não ganhava tanto quanto isso e apesar de os processos que defendi serem processos que envolviam muito dinheiro... eu recebia uma pequena percentagem... Como conhecia (por ter colegas na PJ do Porto) os meandros da droga caí no mundo do dinheiro fácil. Fui apanhado, preso e quando saí da prisão há dois anos só tinha uma casa: a rua...

Voltámos para casa, com um nó na garganta e as mãos geladas. Era Dezembro, nem as já milhares de luzes de Natal nos aquecia... A noite estava muito fria, sentimos (mais eu) o conforto do lar, bebemos um chá quente e fomos dormir, antes de me deitar olhei o céu e vi uma estrela cadente. O meu desejo foi mais rápido que a velocidade desta: voltar a ser o mesmo... de preferência com quem fui feliz desde sempre.

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"Retrato frio" - parte 3 de...

Divaguei nessa noite pelo meu Porto, desta vez já sem o meu carro, tudo o que tinha, tudo o que o tempo e o trabalho me deram foram por água abaixo, nunca pensei, eu... Enquanto passava por mais uma das muitas lojas de música da minha cidade e olhava um piano de cauda da Kawaii lembrei-me do piano em que tive as primeiras aulas com o professor Steve em Nova Iorque, na NYMS, é estranho, não é? Ver alguém ao espelho que não conhecemos de maneira nenhuma, que para comer precisa de pedir, que arruma caros quando até à bem pouco tempo eles, arrumadores, não passavam de um bando de malandros que vagueavam pelo Porto ao som do "Chino Fininho", sempre com atenção à polícia que se passeava tranquilamente pelas ruas e becos da cidade...

Foi a primeira vez na minha vida que senti vergonha de quem sou, não do que fui e do que fiz, mas pelo que me aconteceu! Como pude eu pensar que a vida de artista iria ser um mar de rosas!? Quem me disse que um concerto era sinal de dinheiro em caixa! Tantas banhadas apanhei eu na minha vida que ao olhar para trás me rio. Nunca realizei o sonho de tocar no "meu" Coliseu com os grandes mestres da música do mundo, os grandes maestros como o português Vasco de Azevedo, tantos outros com quem eu me cruzava nos corredores das salas de espectáculo que frequentava. No tempo que estive em frente à montra da loja fez-me pensar sobre quanto é que as pessoas pagavam por um bilhete para me ouvir tocar numas teclas brancas e pretas num cenário quase perfeito num palco com inúmeros efeitos de luz. O som!? Tenho orgulho em dizer que esse era bem natural, nunca quis um micro por cima dos meus pianos. Sabia que as pessoas que estavam na sala estariam em silêncio, vinham para me ver, pagavam para me ouvir. Lembro-me também no dia em que esgotei a sala Suggia na Casa da Música, para em "dueto" com um grande músico portuense entoarmos temas de um passado que eu, com sorte, não cheguei a assistir. Lembro dos meus tios contarem a ida de tios meus para a guerra de África e Ultramar. Sentia, de cada vez que pensava nisso, um arrepio na espinha. O mesmo que agora sinto, mas não porque me lembrei, mas sim porque tenho frio... O meu querido amigo Eduardo estava em Lisboa e só chegava por volta da meia noite, e eu não quis ficar com a chave de casa, tinha medo que me roubassem na rua... As pessoas que um dia me bateram palmas, hoje fogem de mim, tentam a todo o custo não passar à minha beira, consideram-me mais um dos muitos sem-abrigo neste porto sem sentido. Estamos em Dezembro... Uma criança brinca indiferente a tudo o que se passa à volta, não quer saber se um carro aparece de repente, quer brincar para se abstrair do frio. A sua mãe, senhora de não muita idade (aparentava uns trinta) pedia uma esmola a quem por ela passasse. Sinto-me triste, vazio, mas ainda tenho um tecto para viver, apesar de a mim não pertencer.

No regresso a casa de Eduardo fui abordado pela polícia, foi a primeira vez na minha vida que tive medo de tal personagem da cidade, puseram-me no carro e levaram-me para a esquadra. Quando lá cheguei, algumas dezenas de jovens e velhos sem abrigo lutavam por um cobertor, enquanto outros eram interrogados sobre o que faziam naquele sítio, aquela hora... Quando foi a minha vez de falar perguntaram-me num tom brusco e medroso:

- Nome! Idade!

- Mário Barreiro, trinta e cinco anos.

Ouvi uma grande gargalhada, depois um dos inspectores da PJ dizia:

- Esse é músico! Não és o mestre das teclas. Lembras-te Marco, quando fomos ver o concerto dele no Batalha?

- Sim, lembro-me!

- Então o senhor diz que se chama Mário Barreiro. Tem a certeza que é mesmo o seu nome? Então se é músico, eu também fui. Que notas constituem um dó maior?

- Dó, mi, sol! Respondi sem pestanejar nem demorar...

- Olha Marco, um arrumador instruído! Então sabes responder a esta: a semínima é ou não uma nota musical?

- Não! É uma figura que representa o tempo em que uma nota deve soar!

Ficaram de boca aberta os inspectores. Mas não se fizeram rogados, continuaram a fazer perguntas de música e eu sempre a responder. Olharam para mim e disseram-me olhos nos olhos:

- Nós vamos-te apanhar! Vê o que andas a fazer pela cidade!

Nunca me senti tão humilhado na minha vida, nem mesmo naqueles espectáculos em que só tinha meia dúzia de pessoas a assistir, aquilo foi desumano. No caminho para casa do Eduardo chorei, chorei, chorei... Coloquei tantas questões a mim próprio que nem dei fé de um grave acidente ali bem perto dos Aliados... Ai, puta de vida!

...

"Retrato frio" - parte 2 de...

"Porto, 2 de Dezembro de 2008

Esta data fica para sempre marcada como o início de uma nova etapa na minha vida... Sinto a vergonha de olhar para trás e abandonar a casa que em tempos julguei ser capaz de manter mas foi pura ilusão... Deixei lá tudo o que tinha, o meu cão ficou para trás, a minha Teresa e o nosso primeiro filho... Ela, foi para casa dos pais e levou o miúdo. Eu tenho vergonha de pedir ajuda a quem quer que seja, deixei de falar com os meus pais há uns anos largos, entretanto a minha mãe faleceu. Não estive no funeral, estava em Budapeste para dar um recital de música clássica também com um grande pianista romeno, de seu nome Constantin Sandu, não senti a dor que um filho sente, deixaram de ser meus pais, cortei relações em definitivo com eles... Lembro que cheguei a Budapeste, tinha uma mensagem do meu irmão a dizer que a mãe tinha sido internada e que seria bom eu estar no Hospital, mas eu não voltei para trás. Enviei uma mensagem a dizer onde estava e que eles já tinham deixado de ser a minha família, apenas contava com ele para o que desse e viesse.

Morava perto de Miguel Bombarda, numa das zonas históricas do Porto, lugar da boémia e das noites mal dormidas, ou por trabalho ou em lazer, ali pelos lados de Cedofeita, num café onde persistia um velho steinway com vista para uma parede onde Marlyn Monroe sorria... Grandes noites passámos nós, digo nós, músicos e boémios do Porto Velho, aquele Porto que os turistas não conhecem e que teimam em não querer conhecer... Pedi abrigo temporário a um grande amigo meu, Eduardo Brás de seu nome, era solteiro, tinha 30 anos e uma vida de boémio também, era poeta e escrevia umas colunas para um jornal do Porto e depois tinha o seu blog na internet. Raramente nos encontrávamos, mas lembro-me que por mais de uma vez me pediu para que lhe arranjasse bilhetes para um recital meu. Lembro-me muito bem do último concerto que ele assistiu: foi na fundação Copertino Miranda e depois fomos jantar uma francesinha ao tal café que tinha o piano e por lá continuamos noite dentro... Abriu-me as portas de sua casa como se fosse minha mas não queria abusar da sua boa vontade. Expliquei-lhe o que se passou, ao que ele me disse: - Mas eu não sabia que estavas com dificuldades financeiras!

- Não estava! Mas vivi sempre na ilusão que podia pagar pelo que fui comprando, lembras-te do Steinway que não tinha 2 anos? Comprei entretanto um Yamaha C4 e ia pagando ás prestações, depois comprei um carro para a Teresa a pronto, depois montei o estúdio lá perto... mais um investimento sem empréstimos... Quando fui a ver estava até ao pescoço a dívida...

- E os concertos?

- Dinheiro ainda não chegou e de alguns não sei se vou receber nem metade... Prometeram-me mundos e fundos e quem vai ao fundo sou eu...

- Vá tem calma, eu ajudo-te!

- Deixa-me ficar uns dias aqui até eu arranjar uma solução...!

- A casa é tua! Não te vou deixar ficar na rua...

- Tanto que lutei... A casa dos nossos sonhos fica agora nas mãos de um banco, o piano não o consegui pagar e eles vão-me lá buscar para a semana. Que vergonha!

- Vá! Não penses mais nisso, anda, vamos beber uma cerveja! Pago eu!

Escorreram-me as lágrimas pelo rosto ao ouvir estas palavras "Pago eu!". Em tempos eu convidava os amigos e eu é que pagava o jantar, e agora convidam-me para uma cerveja. Saí de casa e trouxe na carteira tudo o que tinha no meu cofre: 300 euros! É triste, mas é verdade! Amanhã vou tentar vender o meu relógio e a minha aliança, não faz sentido eu ter... As horas não preciso para nada, e a minha mulher... ficou para trás, para poder seguir a sua vida.... para a frente! A minha está a andar para trás, e hoje é só o primeiro de uma nova vida, seguramente, uma que não escolhi!

"Retrato frio" - parte 1 de....

A noite nem por isso vai alta, o trânsito na Baixa é quase inexistente... Está frio, uma criança brinca indiferente ao perigo da estrada ali ao lado... Sem perder a timidez e modo introspectivo que me é característico desde que me conheço como gente, se bem que hoje mesmo olhando ao espelho me é difícil reconhecer. A barba está comprida e feia, a minha cara está povoada de rugas, cada uma delas terá uma história para contar, o porquê da sua existência, se calhar, erros estúpidos que cometi, conheci pessoas incultas da vida que lutaram só para que fizessem da droga um modo de vida. Passo por São Lázaro em direcção aos Poveiros, desço Paços Manuel até dar de frente a um portão verde desbotado. Lá dentro espera-me uma sopa sem sal, uma sande de manteiga de ontem (mas que me sabe pela vida... e uma peça de fruta!

Sinto o "coração" da cidade pulsar mas o meu há muito que o deixei de sentir, se calhar já deixei de existir, sou apenas um corpo que divaga lentamente ao barulho insurdecedor dos motores e buzinas nesta cidade que eu amei, que um dia chamaram de Porto. Sinto por momentos um conforto, o conforto de um lar (algo que já não sei o que é há muito... o meu lar é a rua do Almada, a rua das Flores, a rua do Caldeireiro...). Há muito que não sei o que é uma cama feita de lavado, um bom banho antes de deitar, um tecto para viver, um cobertor para me proteger.Na mesma situação que eu está o Manel, o Quim, o Zé. Apesar de nomes diferentes todos temos a mesma história para contar: um dia tínhamos família, quando "acordámos" estávamos sozinhos na rua..., Nós somos personagens esquecidas num livro de prateleira dourada, nessa onde o príncipe encantado chega montado num cavalo branco e a bela donzela espera numa torre alta... tão alta como a dos Clérigos que agora vislumbro. Hoje é sexta-feira ou ainda é quinta? Passo nas ruas da confusão estendendo a mão à espera de uma moeda para comprar algo para lá de pão. Não é para álcool nem para droga, não sou delinquente, sou sim vítima inocente. Todos me olham com desdém, todos me dizem para me matar, para desaparecer... Faria isso de bom grado, deixava de sofrer. Procuro um abrigo numa noite que se adivinha de muito frio. Encostei-me a uma porta fechei os olhos e imaginei mais uma vez...o conforto!

O meu corpo sente-se cansado, imaginem o meu coração. Daria tudo o que tenho, o pouco que tenho... para voltar a ter aquele espaço que um dia foi nosso, que tem 3 letras e se chama LAR. A noite passa, passa devagar, o meu coração começa a fraquejar. Não sinto medo da tal barreira passar porque sei quando os olhos em definitivo fechar haverá alguém do outro lado e a mão vai esticar para me ajudar. Eu sou só mais um entre muitos sem abrigo neste Porto sem sentido. Divago, divaguei, hoje sei... Fui, sou e serei o homem que um dia acordou e se casou com uma mulher chamada RUA. Um casamento que durou tempo demais. Fecho os olhos e penso: vou partir mas antes vou-me de ti despedir... Amanhã dificilmente aparecerá o meu nome no jornal, não tenho identidade... Essa? Perdi-a um dia destes, há muitos anos na minha cidade!




Francisco Azevedo

"Retrato frio"

8 de Setembro 2010