Dei por mim a vaguear numa artéria que há muito não visitava mas não me lembrava sinceramente do nome, logo eu, que conhecia a minha cidade como a palma da minhã mão, como diria um amigo meu: eu era um gps em corpo de homem! Seria ela uma rua por mim inventada como se estivesse num filme ou uma personagem de um qualquer livro ou seria ela uma rua que um dia foi minha por empréstimo...
Divagava nos meus pensamentos quando ouvi alguém chamar por mim, uma voz doce, incrivelmente feminina mas não consegui saber de onde vinha. Estava já a perder a esperança quando uma menina, ou diria mulher, de olhos castanhos e cabelos compridos parou diante de mim:
- Mário Barreiros! És mesmo tu!? Não te lembras de mim?
Sou sincero que a voz não me era estranha mas a sua cara era um completo mistério...
- Desculpe, não estou a ver quem é.
- Marta! Do Coral de Letras, partilhámos o palco do Coliseu há dois anos.
- Ah...! Sim, desculpa não ter visto que eras tu mas como me reconheceste? Já viste como eu estou?
- Reconhecer-te-ia até no fim do mundo numa qualquer rua de Hong Kong ou Nova Iorque.... Mas o que se passou?
- Já percebeste que eu não sou..... quem fui!
Lembro-me que nesse momento baixei-me, fiquei bem perto do chão, sentei-me num degrau que dava acesso a uma joalharia e pus a cabeça nos joelhos, como se tivesse vergonha de lhe mostrar o meu verdadeiro eu...
- Mas, o que se passou?
- Bem, a história é muito comprida, não sei se vais gostar de ouvir nem sei se terás paciência para me aturar....
- Mário! Conta, eu quero-te poder ajudar! Sempre foste uma referência para mim, não vais deixar de o ser...
- Basicamente a história da minha vida resume-se a isto: há pouco tempo era feliz, de um dia para o outro perdi tudo... O dinheiro dos espectáculos não apareceram mas nem isso me levou a parar de fazer compras megalómanas e supérfulas. Comprei um piano de cauda para a minha casa em troca de um de meia, comprei um carro para a minha mulher e outro para mim e forrei o salão com colunas de alta potência e montei uma estúdio aqui bem perto do centro. As dívidas começaram a acumular, um dia quando estava a chegar a casa estavam lá dois agentes da PJ que tinham um mandado do tribunal para me penhorar tudo o que tinha para pagar o que devia... De um dia para o outro perdi a minha mulher, o meu filho, o meu cão, a minha casa.... Enfim, a minha vida! Desde o dia dois de Dezembro que vivo num chão frio ali perto do Rivoli nas arcadas do Banco. Nunca mais me ligaram para concertos apesar de ainda ter o mesmo telefone que vou carregando aqui e ali à sucapa, o meu agente desapareceu sem deixar rasto, abandonou-me com um dinheiro que tinha de parte e fugiu para parte incerta. Eu é que continuo sem destino, ou melhor, sei qual vai ser o desfecho: morrer aqui ou ali.... na rua!
- Não digas isso Mário! És um grande músico, encheste salas, tocaste com as melhores filarmónicas, viajaste pelo mundo porque te queriam ouvir. Vais ver que isto é só uma fase. Olha, porque não vens jantar lá em casa hoje? Há quanto tempo não tocas piano?
- Não, obrigado... Não quero nem posso incomodar, sou um sem abrigo, sou mais um no meio de tantos desta cidade. Já não sou o Mário Barreiros que enchia salas nem tão pouco o que ficava hospedado em hotéis de luxo...
- Vais sim senhora! Eu insisto, és meu convidado...
- Desculpa, mas não posso. Não posso voltar por momentos a sentir um conforto de lar e umas horas mais tarde estar a dormir.... ao relento, numa fria noite que nem o luar me aquece...
Marta olhou para mim com uma lágrima no canto do olho, parou durante alguns segundos para pensar no que me iria dizer depois de eu lhe ter dito isto....
- Ficas em minha casa estas noites, eu estou sozinha, aliás, vivo sozinha. Se nos dermos bem e se pagares a renda não tens porque te ir embora. Vem viver comigo durante uns tempos, vais ver que ainda vais encontrar de novo a felicidade e o caminho dos palcos...
Ao ouvir isto os meus olhos ergueram-se para ela, esperei tanto por um momento como este.... Casa, conforto, cama com colchão, cobertores.... Palavras pequenas mas que para mim tinham ganho um novo significado e importância. Acho que foi a primeira vez que chorei em frente a alguém... nem mesmo na morte do meu pai chorei, não estive presente, estava no estrangeiro para dar mais um recital.
- Mas eu não sei onde tu moras, não te quero incomodar...
- Rua da Torrinha nº 215! É fácil, vais de táxi, pega dinheiro...
- Não te preocupes! Eu vou lá ter, vou levar o que ainda me resta....
Faltavam poucos minutos para as oito e meia quando toquei no número 215 da rua da Torrinha, com uma mala quase vazia dos meus pertences e um chapéu meio desfeito na outra... Era o que eu usava para estender às pessoas por quem passava na esperança que alguém com um bom coração me desse uma moeda ou duas para uma sopa, porque tudo o que me davam era para me sustentar, não para me drogar como acontecia com outros sem abrigo.... neste Porto sem sentido!
Sem muito esforço.... enquanto a porta vermelho meio desbutado não se abria, pensei para mim mesmo:
- Não posso ter expectativas muito elevadas! Quero mudar a minha vida mas preciso que me ajudem... mas não posso pedir tamanha ajuda à Marta. Ela não merece que eu faça isso...
Enquanto a minha mente pensava em alguém que me ajudasse a escrever um novo capítulo da minha vida a porta abriu-se com um sonoro:
- Bem vindo a casa!
- Obrigado! És um anjo!
Jantámos pela cozinha, há muito que não tinha uma refeição completa, de comida caseira acabadinha de fazer. Arrumei tudo, aprendi os lugares das coisas.... sentei-me ao piano, toquei Chopin e a minha que me fez lembrar.... o momento em que eu era ALGUÉM. Hoje talvez seja o dia em que componha uma música que comece com a seguinte frase:
Há tempos descobri...
Que nada sabia...
Foi preciso viver fora do meu ninho...
Para saborear as coisas simples do dia-a-dia!
Fechei o tampo, pousei os cotovelos sobre o Samick que estava na sala e soltei uma furtiva lágrima. Lágrima causada pelo conforto e paz que há muito não sentia... Um conforto na alma e coração numa noite fria...
Porto, 12 de Janeiro