segunda-feira, 30 de junho de 2008

A cidade de Garret

"...O Porto é a mais fechada das nossas cidades (daí parecer tão secreta), e eu nunca procurei ganhar a sua confiança - sou um homem do sul, quando a conheci já pertencia a outras luzes, a outras sombras. Vivendo nela como se nela não vivesse, da sua alma sabia apenas o que me chegava na fala dos outros: a rudeza masculina, tão franca que roçava pela brutalidade; a muralha de má catadura, a defendê-la de abusos do poder e de ladrões...".

"... A solidez das suas convicções políticas, forjadas ao longo dos séculos, a pulsação febril e pagã das suas festas; a digestão sonolenta das tripas e do lombo assado regados a verde tinto; a desventrada vitalidade da sua população ribeirinha, onde o descaro da linguagem se mistura ao ruído dos socos - e muitas outras imagens, porque a cidade não é fácil de entendimento, nem amável aos primeiros contactos. Com o rodar dos dias a gente vai-se arrumando: descobre uma rua tranquila onde as árvores se tingem de cores orientais no outono; arranja um gato com olhos cor de miosótis a quem se dedica; ganha afeição a duas ou três pessoas com quem partilha o chá e as opiniões..."

"... Não sai à rua nas horas de ponta para não endoidecer; e acaba mesmo por por descobrir na cidade coisas que só o tempo devagarinho lhe pode trazer: uma intimidade recolhida e serena que os seus nevoeiros espessos frequentemente escondem; uma concentração no trabalho, que é outro dos nomes do amor; um orgulho refreado de se saber herdeira do espírito e das brumas românticas do Norte..."


In: "Oporto" - de João Paulo

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